quarta-feira, fevereiro 03, 2016

PRAZER MOMENTÂNEO

De uma série de folhetos escrito por
diversos autores, dirigidos aos alunos
da Universidade Mackenzie.

Há quem pense que cristão não tem alegrias nem se dá ao luxo de prazeres. Ao contrário, um texto do Livro dos crentes, a Bíblia, diz ao jovem que se alegre na sua juventude e tenha prazer na sua mocidade, que satisfaça os desejos do seu coração e que agrade seus olhos. Tudo de bom, não é? Só que isso não significa liberação geral.

   A alegria não pode ser a máscara do choro
        nem, o prazer, a antecipação da dor.

Afinal, quem gosta de choro e de dor é viola. Assim, para manter a autenticidade da alegria e do prazer, o autor do texto, Salomão, prossegue, dizendo que toda alegria e todo prazer devem ser regrados por uma boa consciência diante de Deus, a fim de não virar desgosto de coração e dor da carne. [1]

Como disse esse sábio Salomão, o negócio de prazeres imediatos sem mediação de boa consciência nunca mede esforços nem consequências. Há alguns anos, saindo do prédio onde eu lecionava, logo ali na movuca da esquina, dei de cara com o filho de um amigo segurando uma garrafa de vodca. Ele me olhou como que esperando não sei quê, e disse: “É água. Tô só fingindo”. Saí meio rindo meio apreensivo. Afinal, já fui moço e tenho juízo suficiente para não dar uma de censor para a juventude. Confesso, no entanto, que o meu riso teve um tom crítico, especialmente com o cheiro acre de erva queimada, no ar, e o meu quase medo de esbarrar o carro numa perna estudantil. O que é que o cara estava querendo? Impressionar? Quem? Pra quê?

Se você quiser entender a dinâmica dos prazeres imediatos e a do verdadeiro contentamento, terá de manter em mente o mapa das motivações e dos desejos do coração. Esses são os temas-chave da vida – há sempre uma motivação e um desejo do coração por trás de todo comportamento. Um professor e amigo, Ed Welch, disse que o mundo dos prazeres imediatos é como o mundo dos relacionamentos mais próximos. A gente entra neles com todos os tipos de expectativas e esperanças. Gostamos de como nos sentimos na companhia de uma e outra espécie de droga, mas quando nos estendemos no relacionamento, começamos a perceber que há uma troca a ser feita. Qualquer que seja a droga (álcool, maconha, picada ou pó), há uma cobrança de cada experiência e de cada sentimento. O preço a ser pago é sempre maior do que o barganhado – mais aí já é tarde. Estamos comprometidos para a vida. Se permanecermos no compromisso, estaremos escravizados (que é o sentido de conjugal) se sairmos dele, seremos sempre um “ex-alguma coisa”.

O cristianismo da Bíblia não trata do uso de drogas por meio de moralismo, pois considera o próprio moralismo como qualquer droga, cheio de promessas e de nenhuma liberação. Pior, o moralismo escraviza por meio de exaltar a vaidade para, no final, agir exatamente como as drogas, dando um tombo na pessoa. Nas drogas, você será um “drogado”, saindo dela por sua própria vontade, você será drogados “de si mesmo”, cheio de vento e disposto a outras muitas vaidades. Poderá ser que encontre algum tipo de sucesso da empreitada de evitar ou de sair do engano do prazer instantâneo. Por isso mesmo devo deixar bem claro que uma pessoa somente poderá lidar de modo pleno com a questão dos prazeres imediatos – drogas, sexo livre, e toda espécie de mau-caratismo, seja para evitar entrar num compromisso firme ou para sair dele – por meio de uma transformação espiritual. Sem isso, será sair de uma viagem ruim para entrar em outra. Quer você esteja com uma garrafa de água, fingindo ser bebedor de vodca já pisando alto ou caçando frango, quer você tenha abandonado a chupeta, você estará fingindo ser o que não é. Fingirá alegria, fingirá ter prazer nas coisas, mas sem contentamento.

   A fim de encontrar satisfação pessoal verdadeira e a fim de evitar 
   ou sair de uma roubada você terá de conhecer suas próprias motivações, 
   conhecer seus desejos, e conhecer o contentamento verdadeiro.

Conhecendo as motivações do coração
                Pense um pouco sobre o que é que motiva o seu coração. Como disse Pascal, ele tem razões, e não é sem razão que o coração físico é figura do aspecto central da pessoa. Estende sua ação interior por todo o corpo e aparentemente reage ao ambiente batendo mais forte ou mais fraco. Aparentemente, digo, porque a pessoa não é dividida, e nenhuma de suas partes opera em isolação. É nele, contudo, que sentimos as mudanças do comportamento do corpo e da alma. Por isso é que se fala de motivos do coração. São motivos internos que também reagem ao ambiente externo. Alguns desses motivos são básicos e universais, isto é, estão na raiz dos nossos sentimentos e comportamentos, e todo mundo têm.

O cristianismo da Bíblia aponta para a pessoa humana como sendo criada por Deus com o propósito de refleti-lo e, assim, ser autêntica e contente com a própria condição. Dá para ver que hoje a coisa não é como deveria ser. O ser humano foi corrompido pelo pecado e vive com falta do conhecimento de seu Criador e de seu propósito como criatura. Nessa base, as pessoas são motivadas a procurar esse conhecimento.

O dilema humano nessa condição é tratado pela revelação de Deus como sendo de morte e de cegueira. A pessoa está morta espiritualmente e cega para as coisas de Deus. Num sentido, ela conhece a Deus porque a vida que tem no corpo é alentada por Deus que lhe dá, até mesmo, a respiração; noutro sentido, não poderá conhecê-lo se ele não se manifestar. Vem daí, então, que o coração sem Deus vive em um vazio interior, vendo o mundo exterior, nas palavras de Vinícius de Morais, como “bares repletos de homens vazios” (e olha que de copo e de vidas vazias o poeta entendia).

Motivados interiormente por um vazio existencial e exteriormente por tendências sociais formuladas por pessoas vazias, o que resta é repensar a natureza da vida que experimentamos e imitar as vidas de pessoas que igualmente se repensaram.

   Alguns têm motivações mais altas, outros, mais baixas, 
   mas ninguém poderá ir além da própria estatura moral adquirida 
   no conhecimento de si mesmo.

mal, num ? E piora! Sem um paradigma maior para refletir, refletimos o quarto escuro do nosso vazio interior e/ou o escuro do universo. É o oco do peito ou o buraco negro do lado de fora. E Tudo isso não ocorre sem peso. Tudo envolve a gente. Nossas motivações estão ligadas às pessoas. Tem gente que vive se protegendo de pessoas, tem gente que vive se distanciando de pessoas, e tem gente que vive contra as pessoas. Na verdade, esses movimentos, conjuntamente, fazem parte da dinâmica do indivíduo, mas um é caracteristicamente mais visível no comportamento.

De maneira geral, sem cair no risco de reducionismo, para conhecer suas motivações básicas você poderá se perguntar: o que é que eu quero?
(1)     Ficar na minha, vestido de esquisito, num canto, tentando puxar as próprias rédeas para ver se o pessoal nota e segue?
(2)     Ser a alma da festa, o sábio do rei ou o bobo da corte, que enche a cara ou enche os caras, mas segue, obsequioso?
(3)     Ser o chefe do grupo, na técnica ou na marra, líder da torcida e do esculacho?

As respostas, dadas de maneira consciente, honesta, proporcionarão uma idéia dos motivos do seu coração. Você poder tentar controlar seu comportamento, mesmo que seja para não passar vergonha, chamar a atenção ou dar uma de não tô nem aí (porque você está ali!), mas, fazendo isso, já teve seu comportamento controlado. Você pode tentar agradar as pessoas, mas jamais conseguirá agradar a todos, pois teria de ter mil caras para tanto gosto diferente – e ninguém gosta de gente de duas caras. Você pode, ainda, tentar mandar nas pessoas, mas terá de admitir que autoridade é força de caráter e não ferramenta de manipulação. No final das contas, controle, agrado ou ditadura estão todos ligados à manipulação.

O que é que essa tentativa de manipulação tem a ver com a busca do prazer imediato? A primeira parte da resposta tem a ver com a ferramenta social do admirável mundo novo, de ídolos substitutos ou de promoção. Autores, artistas, atletas, pais, professores, todos têm algo em que se encostar ou para alavancar a vida: comida, bebida, fumaça de baseado ou de óleo diesel, remédio sem prescrição ou bolinha. Crescendo nesse meio social, quando chega o tempo o voo solo, só podemos repetir o comportamento treinado. Isso por que somos socialmente motivados. A outra parte da resposta é a que se segue.

Conhecendo os desejos do coração
                Como dizia o bêbado do bairro, entre o engasgo e a careta, “Essa mardita é da boa”. A gente sabe que bolso de bêbado não tem dono, que depois do pó ou do pico a festa acaba para os sentidos, que o desvario sexual avacalha qualquer relacionamento – mas a gente gosta! Por quê? É claro que é porque é gostoso! E, no mínimo, por duas razões: uma é que poderá ser que a coisa seja gostosa e, a outra, que o nosso gosto seja deturpado. Não tem gente que come sei lá o quê?

                Os desejos do nosso coração são, coerentemente com as nossas motivações, interiormente nutridos e socialmente aprendidos. É impossível dizer onde começa porque é sistema de retroalimentação. Os desejos do meu coração são formados segundo minhas interpretações da realidade – na família, na vizinhança, na escola, na sociedade – e, daí em diante, elas dominam meu cenário de vida. Depois que o gosto foi criado, e só pensar que a boca já saliva.

Nós gostamos das drogas “sociais” por causa do que elas fazem por nós, ajudando-nos a lidar com nosso desejo de isolação (para longe de pessoas), com nosso desejo de pertencimento (para perto de pessoas) e com o nosso desejo de domínio (contra pessoas). Um pouco de droga pode fazer maravilhas para qualquer dessas motivações – até mesmo para caspa na sobrancelha. Algumas vezes, as pessoas mantêm uma baixa expectação da vida, e vão levando a existência, dopadas. Outras vezes, as pessoas dão de cara com a realidade e se deprimem, planejam mudar, mas o gosto da coisa é mais forte e o próprio sentimento serve de gatilho para o desejo.

   O cerne do problema é que esses ganchos de apoio acabam sendo 
   próteses do nosso ser. Apoios falsos que podem ser físicos (produtos) 
   ou simbólicos (em que até coisas boas podem escravizar alguém
    e roubá-los dos valores maiores da vida).

Nós amamos essas drogas como a um braço ou perna, e não estamos dispostos a removê-las da vida. Temos nossos momentos de ódio do mal-estar que elas podem provocar, e momentos de ambivalência, mas, no final, voltamos a elas porque queremos. Depois de um tempo, passamos a amar mais os ganchos falsos, as próteses, do que o nosso próprio corpo.

O Welch disse que isso é ambos, a lógica e a insanidade do abuso de drogas – e que essa parece ser a lógica e a insanidade da condição humana. Tal condição não se limita a abuso de drogas e álcool. É o mesmo princípio por trás da procrastinação, dívidas, excesso de comida, gastar tudo num jogo, colar na escola, e daí em diante.[2] Uma vez que estejamos escravizados aos nossos desejos, nas correntes de substâncias e de comportamentos, colocamos fé em sua satisfação como fonte de prazer e alívio. O problema com esse modelo é que o pretenso alívio é mero entorpecimento e, o prazer instantâneo, rápido e passageiro, deixando a gente com a boca com gosto de cabo de guarda-chuva ou de corrimão de escada.

Motivações e desejos do coração  
                Normalmente não se pensa do ateu como sendo idólatra – se não tem religião, como cultuar a ídolos? Sequer pensamos que haja ídolos seculares. Você talvez não tenha considerado que tudo o que colocamos como “salvador” para as nossas motivações e desejos trata-se de idolatria. Se você quer ver como um homem não cristão viu essa condição humana, leia o conto de Machado de Assis, Igreja do diabo. No conto, o diabo acusa os adoradores de Deus de fazerem o bem em troca de benefícios. Diz que, de noite, o povo abusa do mal. Deus permite, então, que o diabo troque o mal pelo bem. A partir daí, o mal é a coisa a ser feita. Acontece, porém, que, mostrando a origem boa do homem, o povo começa a sair em secreto, na calada da noite, para fazer o bem aos vizinhos e estranhos das ruas. Esse é que é o negócio – somos todos religiosos, quer ateus quer agnósticos quer religiosos de qualquer crença.

Você poderá, até mesmo, evitar as drogas ou sair delas por si mesmo, como já foi dito. Mas trocar o mal pelo bem, sem Deus, será apenas, como disse Machado de Assis, trocar a renda de uma toalha. A toalha é a mesma. As necessidades humanas que jamais poderão ser satisfeitas pela própria pessoa serão apenas trocadas por necessidades cada vez mais prementes e frustradas. É uma troca de ídolos. A única forma, portanto, de alcançar uma transformação de motivos e de desejos será por meio de conhecer a Deus como Criador e Salvador e, assim, conhecer a si mesmo como criatura.

Deus é conhecido em seu Filho, a Palavra Viva, sua única revelação pessoal, e isso, por meio da sua Palavra, a Bíblia, sua única revelação escrita. Segundo Jesus Cristo, toda a Palavra revelada se resume em “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Não quer dizer amor por si mesmo como base do conhecimento, mas amar a Deus primeiro e, depois, a si mesmo como objeto do seu amor. Quando você conhece o amor de Deus em Jesus Cristo – que  nasceu, morreu, viveu, ressuscitou e reassumiu seu lugar ao lado de Deus – toda a motivação de sua vida muda o lugar de perspectiva.

É uma mudança de natureza, um novo nascimento espiritual que fornece nova visão das coisas.
Aí, sim, seu desejo sofre mudança radicais. Antes, você não podia evitar a escravidão das motivações e desejos do coração. Depois dessa experiência, você ainda lutará contra as motivações do antigo coração e ainda desejará as coisas gostosas da vida. Mas terá uma nova consciência por meio do Espírito de Deus e de Cristo habitando em seu coração, e poderá fazer escolhas segundo a verdade e a bondade de Deus. Não haverá mais necessidade de fingir o que você não é nem de ser o que não quer ser, mas haverá, nas palavra da Bíblia, “um novo ser criado à imagem do Filho de Deus”. A comida e o vinho que ele serve, além de gostosos na boca, alegram a alma.

O problema dos prazeres instantâneos não é simples e não poderia ser reduzido, aqui, mas não será de difícil resolução, pois Deus já fez toda a parte complexa. Esta é uma introdução. Se você, no entanto, percebeu aonde estamos e aonde queremos chegar, a Capelania do Mackenzie tem pessoas preparadas para ligar com os aspectos espirituais, teológicos, psicológicos e físicos do problema. Procure um dos capelães. Não haverá juízo precipitado, mas ajuda verdadeira.

Wadislau Martins Gomes
Pastor presbiteriano (jubilado), autor de diversos livros, tradutor e conferencista. Desenvolve estudos e ministério na área do aconselhamento pastoral desde 1973. É professor visitante do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper.



[1] Eclesiastes 11.9-10.
[2] The Journal of Biblical Counseling • Volume 16 • Number 3 • Spring 1998 23

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