sexta-feira, fevereiro 17, 2017

POR QUE VALORIZAR A HISTÓRIA?



O coração do sábio discernirá o tempo e o modo (Eclesiastes 8.5).

O passado não é assim tão remoto
Um pastor perguntou à classe de escola dominical há quanto tempo o mundo existia. Um diácono respondeu categórico: “502 anos — comemoramos os quinhentos anos já fazem dois anos”.  Um candidato ao ministério, referindo-se a um pastor brasileiro, professor num seminário, comentou: “Ele é fera mesmo. Foi aluno do próprio Calvino” ­– pensando que seu professor tivesse estudado poimênica aos pés do grande reformador, quando ele se referia a um professor e clínico atual.
Se você tem menos de trinta anos, não terá participado do protesto Diretas Já. Se está na casa dos vinte, será que chegou a marchar pelo impeachment do Collor? Você se lembra onde estava quando Kennedy foi assassinado?  Se tiver mais de quarenta anos, talvez tenha imagens indeléveis em preto no branco e com matizes de cinza, da realidade do desmoronamento do pretenso Camelot moderno — o choque da vulnerabilidade dos mais poderosos do mundo. Outra imagem inesquecível transmitida pela televisão foi do salto para a humanidade que foi o primeiro passo do homem na lua. Lembro-me daquele dia: um senhor na padaria onde fomos comprar leite afirmou categórico: “Isso é tudo propaganda americana. Montagem. Ninguém jamais irá à lua”.
Você se lembra dos dias de agonia com a doença e morte de Tancredo Neves, de quem pensávamos ser o primeiro presidente não militar desde a revolução de 64?
Meu marido contava a jovens que, antes de sua conversão, jovem, fora preso na revolução militarista e, da cadeia, ouviu um conhecido pastor declarar que “agora acabou a luta contra o comunismo porque eles estão todos presos onde deviam estar”. Os jovens o olharam como se fosse um ocorrido de outro século — e era de vinte anos antes no mesmo século vinte.
Ele mesmo conta de conversas com seu pai que descrevia a ida a São Paulo para participar da Revolução Constitucionalista de 34. Parecia-lhe tão distante no tempo... hoje conversamos com jovens sobre momentos históricos de que participamos e eles nos olham como se fôssemos de outro planeta.
Meu avô contou-me que o seu pai, quando jovem, apanhou do pai dele quando afirmou que um tal de Alexander Graham Bell havia inventado um aparelho com o qual se podia falar com pessoas distantes a mais de um quilômetro. “Isso é mentira, porque só Deus fala à distância”.

Lembranças pessoais
Recordo-me bem de um dia, em agosto de 1954, quando meus pais, eu aos seis anos de idade (está vendo — agora vocês sabem!) e minha irmã de três, chegamos ao Rio de Janeiro depois de um período de férias nos Estados Unidos. O navio atracara no Rio para os turistas passarem o dia antes de prosseguirem para Santos, o destino final. Minha irmãzinha se perdeu no centro de Copacabana e o taxista não queria voltar com meu pai para procurá-la porque o trânsito estava desgovernado: era o dia em que Presidente Vargas suicidou.
As manchetes sobre gente morta a tiros ao tentar atravessar o muro de Berlim que rasgava a cidade em Oriente e Ocidente ficaram gravadas em minha mente impressionável de doze anos. Agora já nos esquecemos dos poucos anos que passaram desde que o muro da vergonha foi despedaçado e pedaços dele vendidos como lembrança para turistas na Alemanha do final do século passado.
Eu tinha treze anos, e era só uma formiguinha entre as milhares de pessoas, na praça dos três poderes, que assistiam Juscelino Kubitschek inaugurar Brasília, a capital da esperança. Na semana anterior, minha irmã tinha acompanhado papai em visita ao presidente. Guardamos até hoje a foto em que a encantadora menina foi beijada pela primeira dama (nossa rainha), Dona Sara Kubitschek.
Vivi um ano nos Estados Unidos quando se faziam treinamentos, na pacata cidade em que vivíamos, para nos conduzir a abrigos antibombas em caso de ataque nuclear. Não se sabia, nunca, até depois, se era apenas um ensaio ou o acontecimento de fato. O pavor que se tinha do domínio comunista no mundo era disseminado pelo “mundo livre”. Hoje, o mundo livre viu ruir o poder da União Soviética, mas vive com pavor do terrorismo de grupos extremistas muçulmanos. Quem conhece gente que foi tragada pelas torres do World Trade Center em onze de setembro sabe que não existe lugar seguro no mundo. Lembra-se de onde você estava quando ouviu a notícia?

Alienados no presente
                Hoje, a maioria das pessoas não tem noção de história — nem as da igreja nem as do mundo. Igrejas chamadas históricas oscilam com os tempos. Igrejas pentecostais cuja história tem menos de cem anos estão mais tradicionais. Igrejas da terceira onda têm seus “apóstolos” que, em vez de fundamentar a igreja invisível de Cristo, gastam 70 % de seu tempo na televisão pedindo dinheiro e descrevendo as bênçãos da prosperidade. Abundam as afirmativas amalucadas de desconhecedores de história.
Ouvi alguém afirmar que Calvino era um déspota assassino, sem saber que o reformador sequer fazia parte do conselho da cidade nem a razão do seu apoio. Essa pessoa se agarrava a chavões tendenciosos e ignorava por completo o reavivamento que seguiu a Reforma Protestante, fazendo com que, em um ano, a igreja de Genebra abrisse mais de cem novas igrejas e no segundo ano, mais de mil — junto a uma transformação social que incluía o abrigo e sustento pessoal de centenas de pessoas desprovidas de seus bens e familiares (essa era a estirpe dos reformadores!). Voltaram à França com uma visão holística do evangelho perto da qual nosso evangelicalismo xôxo e antropocêntrico empalidece.
“Os que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”, disse o pensador George Santayana.[1]
Em vez da visão de remir o tempo conforme Efésios 5.16, o tempo presente é visto como a hora para se aproveitar ao máximo as oportunidades — para si mesmo! Queremos mais tempo de lazer, tempo para nós mesmos, tempo para investir na pessoa mais importante de minha vida — eu! ­– esquecidos do que disse Paulo sobre gastar-se e deixar-se gastar “em prol das vossas almas, ainda que mais vos amando seja eu menos amado” (2Co 12.15).
Por meio dos livros e de comentários da televisão, somos comprovadamente crentes quando temos sucesso nos negócios, no amor, na vida. Um Jó sentado no pó, destituído de bens, família e saúde, ou um Moisés por quarenta anos pastoreando rebanhos do sogro no deserto antes de gastar mais quarenta anos dando voltas sem terra num deserto ainda mais vasto, conduzindo um povo resmungão, criando nele uma ética de vida para a eternidade, ou um Paulo a quem “Demas me abandonou por amar mais o presente século” — são alheios aos nossos anseios.
 Cristo afirmou que “no mundo tereis aflições” e passou por um tribunal infame e uma morte vergonhosa, abandonado pelos que o seguiram durante três anos de ministério — todas essas histórias “negativas” são estranhas à visão de êxito na vida cristã, proposta pela mídia e pelos púlpitos evangélicos.
Perdemos a visão do tempo presente, achando que somos donos de nosso próprio tempo e podemos gastá-lo em proveito pessoal. Perdemos a visão da atualidade em que fomos inseridos, do tempo que se chama hoje e que amanhã, não volta.
                Diz o educador cristão Robert Pazmiño: “O cristão não escolheu o tempo para sua jornada histórica, mas estar inserido em determinado tempo histórico requer aprendizado do passado e viver no presente tendo em vista o futuro de Deus”. [2]
Sem as raízes do passado, sem saber onde pisamos na atualidade, é impossível que tenhamos uma visão acertada do futuro. Esvoaçamos como borboletas que se agitam e pousam sobre de montes de esterco, em vez de flores, sem jamais alçar com asas como de águias que voam sem fadiga.
A Bíblia começa com uma declaração que engloba tempo, espaço e matéria: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1) e o evangelho se resume na entrada do Deus infinito na história da humanidade finita, dando-nos eternidade de glória: E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como a do unigênito do Pai (João 1.14), na cruz e na ressurreição. A pregação do Evangelho de Paulo incluiu uma visão do poder de Deus na história: “de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação” (Atos 17. 26). Como não prestar atenção à história de nossa fé, à história de nós mesmos, e à inserção do Deus que fala e age dentro da história humana para nos proporcionar apoios sólidos na terra e asas largas e fortes para vôos mais altos?!
Elizabeth Gomes




[1] George Santayana, The Life of Reason or the Phases of Human Progress, vol I, p.284, citado por Millard J. Erickson em The Postmodern World (Wheaton, Ill.: Crossway Books, 2002), p. 1.
[2] Robert W. Pazmiño, Questões Fundamentais de Educação Cristã (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2005).

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