domingo, janeiro 22, 2017

O QUE VOCÊ VÊ É O QUE VOCÊ LEVA

Lenda grega de Narciso

O acrônimo WYSIWYG, da expressão inglesa “what you see is what you get” (o que você vê é o que você obtém), é usado na computação para se referir à representação imediata da imagem gráfica e o resultado final. O dito é verdadeiro em relação a nós mesmos. Dá vergonha de dizer isso, mas o que somos tá na cara e é impossivel de ser evitado. Todos os dias, em todos os meus dias, tento disfarçar os desejos, intenções e atos do meu coração. Isso me faz lembrar de outra expressão usada por linha de avaliação de traços de personalidade, tomada de empréstimo aos mágicos de palco: “now you see me now you don’t” (agora você me vê, agora não). Esta diz respeito ao comportamento dúplice de pessoas que prometem muito e não estão prontas a cumprir ou que repetidamente mostram uma mão enquanto escondem a outra. O fato é que, pelo verso ou pelo avesso, sempre me dou a conhecer. Se, às vezes, parece que sou bem sucedido em minhas estratégias, acabo escravo do engano e do autoengano (cf. Tg 1.17-27). Estou sempre a descoberto aos olhos críticos mais aguçados.

Pense nas palavras da Escritura: Como na água o rosto corresponde ao rosto, assim, o coração do homem, ao homem, e Até a criança se dá a conhecer pelas suas ações, se o que faz é puro e reto (Pv 20.11; 27.19). Elas nos permitem considerar que quando as nossas palavras e ações forem puras e retas, a sinceridade do coração transparecerá na admissão de nossa fraqueza e dependência da graça de Deus. Se, porém, as nossas palavras e atos forem uma cortina de fumaça para acobertar a feiúra da impureza moral, dos valores temporais errados, e da amargura incontida (cf. Hb 12.14-17), isso também transparecerá.

De nada adiantará sistematicamente evitar certos assuntos ou exageradamente abordar certos temas, pois isso também será evidência do mal que abrigamos no peito—um mal chamado hipocrisia! O próprio Senhor Jesus foi quem disse isso, recordando as palavras de Isaías: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens (Mt 15.8-9; cf. Is 29.13). Hipócritas!—chamou. O Senhor se referia ao requerimento farisaico do ato externo da lavagem de mão sem a correspondência interna da purificação da alma. Ouvi e entendei—disse ele—não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina o homem ... o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina o homem (Mt 15.10b-11).
O que fazer? Deixarmo-nos levar pela sátira do vício, como fez Gregório de Matos, o “boca do inferno”?
De que pode servir, calar, quem cala, / Nunca se há de falar, o que se sente? /  Sempre se há de sentir, o que se fala?  ...  Se souberas falar, também falaras, / Também satirizaras, se souberas, / E se foras Poeta, poetizaras. / A ignorância dos homens destas eras / Sisudos faz ser uns, outros prudentes, / Que a mudez canoniza bestas feras. / Há bons, por não poder ser insolentes, / Outros há comedidos de medrosos, / Não mordem outros não, por não ter dentes. / Quantos há que os telhados têm vidrosos, / E deixam de atirar sua pedrada / De sua mesma telha receosos. / Uma só natureza nos foi dada: / Não criou Deus os naturais diversos, / Um só Adão formou, e esse de nada. / Todos somos ruins, todos perversos, / Só nos distingue o vício, e a virtude, / De que uns são comensais outros adversos. / Quem maior a tiver, do que eu ter pude, / Esse só me censure, esse me note, / calem-se os mais, chitom, e haja saúde.”

Longe de nós tamanho cinismo! Mas que o olho crítico da boca do inferno está aí está mesmo. Então, o que fazer? Haverá uma maneira de superar a nossa natureza decaída e alcançar os altos para os quais fomos alcançados pela graça de Deus? Certamente, sim. A própria graça que nos alcançou—Jesus Cristo—é o caminho, a verdade, e a vida (cf. Jo 14.6) a nos despojar de nossa autoimagem artifical e nos transpostar para o conhecimento verdadeiro de quem é Deus e quem somos nós. O apóstolo Paulo fala sobre essa esperança tanto em termos presentes como em termos futuros:
Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós; e Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido (2Co 4.6-7; 1Co 13.12).

Entre o agora e o então, Tiago nos admoesta a cuidar da boca, impedindo a língua de dar vazão à sua natureza decaída, com ela pretendendo bendizer a Deus enquanto amaldiçoamos o homem. De uma só boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não é conveniente que estas coisas sejam assim (Tg 3.10). Isso mesmo também ocorre quando falamos sobre a graça de Deus a pessoas que já são salvas ao mesmo tempo em que as sobrecarregamos com culpa e medo. Ao impenitente fica bem a exposição do seu pecado; ao arrependido, cobre-lhe o sangue do Senhor Jesus e as admoetações da graça. Por isso mesmo, Tiago insta, dizendo que não adianta mostrar-se furioso apenas contra o pecado dos outros, Porque a ira do homem não produz a justiça de Deus. A chave para a coerência de vida baseada na justificação em Cristo, diz ele, está no despojamento da impureza e do acúmulo de maldade, acolhendo
com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma. Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência. Mas aquele que considera, atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar (Tg 1.19-25).  

Em tudo o que realizar? Prosperidade evangelicalista? Prosperidade que o ladrão rouba, a traça corroe, e o olho arguto do acusador percebe e critica? Ou a realização da vontade de Deus, cheia de amor, plena de misericórdia? Quem nos fornece o ensino, com humildade, sinceridade, e sabedoria, é o rei Davi, o escolhido que rogou a Deus que lhe sondasse o coração, o homem que confessou seu pecado, e o crente que confiou no Redentor:
A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do Senhor é fiel e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro e ilumina os olhos. O temor do Senhor é límpido e permanece para sempre; os juízos do Senhor são verdadeiros e todos igualmente, justos. São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais doces do que o mel e o destilar dos favos. Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande recompensa. Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas. Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão. As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, Senhor, rocha minha e redentor meu! (Sl 19.7-14.)

Wadislau Martins Gomes

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