sexta-feira, setembro 16, 2016

SUICÍDIO, MEU DEUS!?

Duas razões pelas quais deixei passar uns dias do impacto para abordar o assunto do provável suicídio de um irmão: em respeito à dor dos que lhe foram próximos, e com respeito à lembrança de minha própria dor. Tive de lidar com meu próprio coração diante de eventos semelhantes ocorridos na família natural e na família da fé. Ansiei por respostas para questões próprias de criaturas criadas para a eternidade e submetidas ao temor da morte (Ec 3.11). Respostas às minhas dores e dúvidas, e respostas de consolação para os que foram abandonados, feridos da morte de alguém. Nossa alma grita uma e outra destas dores: Oh! Meu Deus!? Pode, um crente, cometer suicídio? Era salvo? Perdeu a salvação? E eu, como fico diante do testemunho do evangelho aos fracos e aos perdidos? Será que falhei para com ele? Será que Deus falhou?

De todas essas, a interrogação que poderá, ou não, ser altruísta talvez seja a primeira. As demais tendem a ter mais conosco mesmo. De fato, nossas perguntas imediatas poderão cuidar mais de nossa fé do que da fé de quem tirou a própria vida. Deus, contudo, quer que o amemos sobre todas as coisas e, ao próximo, como a nós mesmos. Alguém disse, com razão, que ninguém pode julgar o coração de uma pessoa – só o Espírito de Deus e o do indivíduo poderão conhecer o seu íntimo (ICo 2.11). Neste caso, lembremo-nos de que o Senhor é Deus de vivos, não de mortos (Lc 20.38), e ele quer que cada um de nós esteja prevenido para não cair em tentação e para ajudar a outros (1Co 10.12; MT 26.41).
Assim, eis alguns pontos cruciais:

·                        Tirar a própria vida em função de desespero é um pecado de desamor e de ingratidão em relação a Deus, e de falta de amor e de desprezo pela vida dos outros. Ao contrário, dar a própria vida por amor de alguém é uma suprema validação do amor. O exemplo supremo e de significado único é o do Senhor Jesus que, espontaneamente, deu a sua vida por amor de nós (Lc 10.18). Seu amor jamais falha e a morte dos seus santos é o cumprimento da promessa (Jo 11.25).  Em termos humanos, há o exemplo de Sansão (Jz 16.28-30), cuja morte cumpriu o juízo de Deus. Há, também, o exemplo do apóstolo Paulo, que tinha o desejo de partir para estar com o Senhor, mas, por amor dos irmãos, escolhia ficar (Fp 1.23-24).
·                        O Senhor Jesus é o vencedor da morte, e, isto, em dois sentidos: (1) ele morreu para a redenção dos eleitos e para a condenação dos ímpios; e (2) ele ressuscitou para conceder vida eterna aos que são seus. Isso significa que nossa vida eterna está nele e nada, nem ninguém, a poderá tirar, seja algo seja alguém seja eu mesmo (cf. Rm 8.33-39), pois ele nos justificou de todo pecado, incluindo o do suicídio ou o da falha em ajudar a alguém com tendência suicida.
·                        De algum modo, o suicídio está ligado à depressão, mas não poderá ser reduzido a uma experiência psicológica. Como disse J. Black (CCEF), pensamentos e experiências afetivas que finalizam na decisão de cometer suicídio procedem da mesma fonte que a depressão leve, isto é, o coração (Pv 4.23). Não podemos nos esquecer é que todos os nossos pensamentos e afeições giram em torno do tipo de relacionamento que temos com o Senhor. Assim, quando pretendemos fazer cessar a dor ou o sofrimento – desapontamento, abandono, perseguição, culpa, ira, medo, perda, e daí em diante – por meio outro que usurpe o senhorio de Cristo, soberano sobre o nosso querer, sentir ou pensar, simbolicamente já atentamos contra a própria vida.
·                        Um ato de suicídio poderá estar ligado a formas mais severas de transtornos afetivos, cognitivos e ou biológicos. Ainda aqui, temos de manter em mente que a pessoa é singular, e que os diversos aspectos da alma interagem no homem interior e se exteriorizam e finalizam nos atos do corpo. Consequentemente, as afeições do coração – expressadas em pensamentos, sentimentos e comportamentos – são experimentadas em termos químicos hormonais nos processos orgânicos. Abuso de drogas poderá produzir pensamentos suicidas; até mesmo, remédios receitados poderão modificar os processos mentais. Onde isso nos leva? Tanto ao fato de que as coisas que sentimos, pensamos e atuamos na mente ou no corpo, poderão alterar nossa disposição física, quanto ao fato de que nossa disposição física poderá alterar o nosso equilíbrio interior. Nessas situações, haverá necessidade de intervenção especializada, de conselheiro e de médico (às vezes, com urgência). Note que, uma vez que nossa vida está guardada em Cristo, será importante que o cuidador professe uma cosmovisão cristã, podendo contar com o auxílio de não cristãos providos pela graça comum para o caso de socorros emergenciais.
Estando cientes, portanto, do perigo envolvido nesta matéria, o cristão deve estar atento a alguns sinais (J. B. CCEF): (1) pensamentos repetitivos sobre terminar a própria vida, como única maneira de escapar à dor e ou ao problema; (2) uma visão de si mesmo que não inclui a habilidade de tolerar intensa pressão e ou dor interna; (3) um senso de isolação ou abandono acompanhado da crença de que outros significantes não podem, não querem ou não fornecem apoio, conforto ou cuidado; (4) sentimentos de desesperança, acompanhado da crença de não pode achar solução de um problema; (5) sentimento de dor psicológica, que parece intolerável, a qual a pessoa relaciona à sua incapacidade para satisfazer suas necessidades sentidas.

Além de solicitar auxílio de alguém com especialização em áreas da ajuda humana, o que uma pessoa regenerada poderá fazer para auxiliar alguém que mostre sinais de ameaça à própria vida? Primeiro, despertar esperança e responsabilidade por meio de confiar nela acerca de uma ação objetiva (p.e., “Prometa-me que você não fará nada que o fira e, se estiver sob essa tentação, ligue-me e espere-me”). Quando esse alguém estiver em condições de conversar, alimente a conversa de maneira sensata e amorosa. Não tente argumentar; faça perguntas que demonstrem as contradições e falsidades do seu autoengano. Conduza-o a desassociar as noções de dor e de necessidades sentidas; lembre-lhe de como Jesus suportou a dor como suprimento para a nossa verdadeira necessidade. Em uma intervenção pessoal, leve em conta que a redução realista do nível de sofrimento poderá mover a pessoa a escolher a vida (p.e., quando uma pessoa querida, cujo filho havia suicidado, perguntou-me: A dor não passa? respondi-lhe: Não, a dor não passa, mas a promessa de Deus é que ele aumenta a força dos ombros para que a possamos suportar – 1Co 10.13). Finalmente, mantenha em mente que é a Palavra de Deus, e não a sua, e que é o Espírito Santo, e não você, que são os poderes que Deus usa para, por meio de você, alcançar o coração do outro.

Ao considerar o tema do suicídio, a pessoa regenerada terá de manter os ouvidos atentos às palavras de Paulo:

Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida (2Co 1.8).

Somente o Senhor tem a última Palavra sobre alguém que tirou a própria vida. Somente o Senhor sabe sobre salvação ou perdição de uma pessoa. Somente o Senhor conhece as profundezas das afeições que moveram alguém ao suicídio. Nós, os sobreviventes, somos instados a cuidar de nós mesmos e da doutrina, e a cuidar uns dos outros. Ah! Que eu faça isto, em humilde oração!


Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, setembro 02, 2016

DISCERNIMENTO, ENTENDIMENTO, CONHECIMENTO


Estava conversando com uma amiga sobre as diversas crises de fé que temos e que observamos na vida de nossos irmãos. São dificuldades na política atual, na ética que nos força e de cujos baixos não conseguimos escapar, da vida que nos cerca e que nós mesmos experimentamos, coisas que nos sacodem e, às vezes, nos devoram. “Quantos que corriam bem de ti longe agora estão, outros seguem, mas também sem fervor vivendo estão...“ (Hino Vivifica, 132 HNC). Muitas igrejas (e os indivíduos que as compõem) optam pelo que é conveniente, moderno, duvidoso, porque estão focados mais no pensamento do mundo do que no de Jesus Cristo, de quem tomamos o nome. Ao agirmos sem ortopraxia, anulamos qualquer ortodoxia que proclamamos. Alguns nem querem mais ser ortodoxos. Preferem ser atuais, e sua contextualização anula os textos firmes da Palavra da Verdade. Vemos a cada dia mais as características dos últimos dias, em que virão tempos difíceis. Como dizia um tio amado, mas enganado: Todos nós queremos um pouco de heresia. A advertência descritiva de Paulo ao filho na fé, Timóteo, está mais real que nunca:

Os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder (2Tm 3.1-5).

Pensando na mudança de paradigmas para algo mais bíblico, abri num trecho que eu tomara como temático para mim, sem prestar atenção ao contexto de Oséias. É o da conversão insincera de seu povo (“o vosso amor é como a nuvem da manhã e como o orvalho da madrugada, que cedo passa”- Os 6.4). Se estas palavras que eu desejava, viessem de coração verdadeiramente arrependido, teriam sido muito mais cedo atendidas pelo Deus de misericórdia:

Vinde, tornemos para o Senhor, porque ele nos despedaçou e nos sarará; fez a ferida e a ligará... Conheçamos e prossigamos em conhecer ao SENHOR; como a alva, a sua vinda é certa; e ele descerá sobre nós como a chuva; como a chuva serôdia que rega a terra (Os 6.1-3).

Deus quer de seu povo um coração contrito: “Misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6.6). Deus disse:

Semeai para vós outros em justiça, ceifai segundo a misericórdia; arai o campo de pousio; porque é tempo de buscar ao SENHOR, até que ele venha, e chova a justiça sobre vós. Arastes a malícia, colhestes a perversidade, comestes o fruto da mentira, porque confiastes nos vossos carros e na multidão dos vossos valentes... Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei o meu filho. Quanto mais eu os chamava, tanto mais se iam da minha presença... Todavia, eu ensinei a andar a Efraim; tomei-os em meus braços, mas não atinaram que eu os curava. Atraí-os com cordas humanas, com laços de Amor; fui para eles como quem alivia o jugo de sobre as suas queixadas, e me inclinei par dar-lhes de comer... (Os 10.12-14; 11.1-4).

O convite insistente vem cheio do amor e da belíssima misericórdia de Deus, que nutre e que cura, que floresce e firma:

 Volta, ó Israel, para o SENHOR, teu Deus, porque, pelos teus pecados, estás caído. Tende convosco palavras de arrependimento, e convertei-vos ao SENHOR; dizei-lhe: Perdoa toda iniqüidade, aceita o que é bom e, em vez de novilhos, os sacrifícios dos nossos lábios... tu és nosso Deus; por ti o órfão alcançará misericórdia. Curarei a sua enfermidade, eu de mim mesmo os amarei porque a minha ira se apartou deles. Serei para Israel como orvalho, ele florescerá como o lírio e lançará as suas raízes como o cedro do Líbano. Estender-se-ão os seus ramos, o seu esplendor será como o da oliveira, e sua fragrância, como a do Líbano. Os que se assentam de novo à sua sombra voltarão; serão vivificados como o cereal, e florescerão como a vide... (Os 14.4-7).

Quando meu neto, Matthew, era pequeno, diferente dos outros que gostavam de arroz com caldo de feijão, e tudo mais, bem misturadinho no prato cheio, ele gostava de separar cada tipo de alimento, não permitindo que se misturassem carne, carboidratos e legumes verdes. Para ele, era questão de discernir cada comida e degustá-la separadamente. Se tivesse no prato arroz com feijão, era capaz de cuidadosamente tirar cada grão de feijão encontrado e colocá-lo num quadrante do prato diferente do de arroz. Depois, comia o arroz, comia o feijão, comia a carne e as verduras e legumes, cada coisa até terminar. Gosto de pensar nisso como a capacidade, desde cedo, de discernir entre um grão e outro, uma verdura e outra. Hoje, que é adulto, ele tem levado essa característica de discernimento aos outros aspectos da vida. Ah! Se entendêssemos que a palavra viva e eficaz de Deus penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, apta para discernir os pensamentos e do coração (Hb 4.12).

Uma das sequelas de um AVC sofrido em 2007 foi que perdi a cristalinidade da voz com que cantava sempre. Mas tenho me descoberto salmista de coração, mesmo com voz de taquara rachada, porque meu louvor não é fruto de voz e respiração treinadas. O meu louvor, como disse o autor de Hebreus, é fruto de lábios que confessam o teu nome (Hb 13.15). Para isso, tive de experimentar primeiramente a disciplina do Senhor, “para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade”, que produz fruto pacífico aos que por ela tem sido exercitado, fruto de justiça (Hb 12.11). Seja esta a oração de cada salmista de coração!

O brilhante Charles Wesley escreveu um hino dizendo “Mil línguas eu quisera ter para entoar louvor” (SH 211), e eu tinha o mesmo sentimento: queria saber expressar o louvor de inúmeros modos e acabo não conseguindo comunicar sequer em meu próprio idioma as profundezas e a amplidão do amor de Deus. “Faz-me conhecer os teus caminhos; ensina-me as tuas veredas; guia-me na tua verdade e ensina-me, pois tu és o Deus da minha salvação,” diz o salmista (Sl 25.4,5). Quero, por esta razão, ter o discernimento, o entendimento e o conhecimento do Senhor conforme disse Jó: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te vêem” (Jó 42.5).

Elizabeth Gomes