sexta-feira, janeiro 29, 2016

ATÉ LÁ, MEU IRMÃO

Emílio fez-me uma visita no hospital. Ali, prostrado, magro “como poste de avenida” (obrigado, Paulo Bonfim), com dores de infecção em vértebras fraturadas e no psoas, recebi-o como quem recebe um outono com gosto de fruta madura. Em um momento, entrou a enfermeira, e perguntou: “Seu irmão?” Emílio, de pronto e num sorriso, moveu o olhar dela para mim, como era seu jeito, e respondeu: “De duas maneiras”.

Se pudesse, agora, eu lhe diria: “Emílio, meu irmão de todas as maneiras, a notícia de sua morte doeu em mim mais do que as dores na carne. Quando Davi contou, foi um murro do estômago. Acovardei-me. Não consegui falar com a Regina nem com Emílio Neto nem com Tércio nem com Catarina. Fiquei paralisado ante a dor da dor. Não pude ir ao seu enterro, não pude chorar com “seu” Emílio e dona Trindade. Não ouvi nem disse uma última palavra.”

Hoje, no calor do verão, Emílio veio aquecer meu coração. Daniel mostrou-me uma nota do Emílio Neto, um escrito sobre primaveras e outonos, norte e sul, árvores secas e folhas coloridas.
Soltou-se o nó da garganta. Vai, aqui, para a prima e para os primos, e para meus filhos, filha, e netos, para os irmãos e amigos, uma reprodução do texto do Emílio, como um presente “de duas maneiras”, de coração a coração. Sou velho, saindo da cena das estações, à espera da vida eterna.

NO OUTONO DA VIDA
2008 http://emiliogarofalo.blogspot.com.br/2008/09/no-outono-da-vida.html?spref=fb

Prefiro ver e sentir o Outono ao norte do equador. Lá como cá, as folhas caem no Outono, pois conhecem o tempo e as estações e “sabem” que sua hora chegou e que devem deixar a vida para que outras folhas ocupem seu lugar. Mas, não se entristecem por isso; ao contrário, engalanam-se, explodem numa profusão de cores que só nesse tempo se vê. Cores inimagináveis ao sul do Equador.

Quando o Outono chega no norte é Primavera aqui (E a Primavera ao sul é mais bonita que a Primavera do norte). Mas, sul ou norte, as folhas caem no Outono. O vento e a chuva, elementos do tempo e do tempo ajudam nessa queda. Mas no norte, quando o espectro de cores se completa, o vento em reverência, antes de derrubá-las de vez, faz com que bailem coloridas no ar, se misturem no céu, como um festival de bandeiras em feriado nacional (licença, Orestes Barbosa, Silvio Caldas).

E a chuva as faz brilhar, mesmo no chão, antes que se conclua sua “saída de cena” e se inicie o processo de transformação em alimento para a flora.
Quando chega o Outono de nossa vida, acompanha-o a angustiante questão sobre como “sair de cena”, uma verdadeira “não opção” já decidida ao nascer. Como fazê-lo?
Com discrição, como as folhas fazem ao sul, à espera de ressurreição na primavera? Ou revestir a alma do turbilhão de alegria que as folhas do norte escolhem sempre, mesmo sabendo que não voltarão e que novas folhas surgirão nos galhos de onde saíram?
Fico pensando que essas folhas que se colorem com o anúncio de seu fim, que festejam o seu próprio fim, acreditam em vida eterna.

Até lá, meu irmão de duas maneiras.

Wadislau Martins Gomes

quarta-feira, janeiro 27, 2016

FOI PERGUNTADO POR QUE NÃO FALÁVAMOS SOBRE OS DONS


(Adaptado do livro Sal da terra em terras dos brasis. Brasília, Ed. Monergismo, 2015.)   
 
Um jovem, na igreja, queixou-se: “Eu tenho o dom de pregador, mas ninguém me escuta!” O fato de o moço entender o dom como sendo talento dele pode motivar muita confusão. Ele se esquecia de que é Deus quem dota e quem confere poder aos que obedecem a sua vontade na prática da bênção com que foram dotados. O dom é matéria do Deus trino e as igrejas foram, são e sempre serão aperfeiçoadas segundo o divino querer.

O registro bíblico dos dons espirituais descreve comportamentos que promovem o fruto do Espírito no indivíduo e a cooperação no corpo de Cristo para realização de sua obra – e não se presta a designar poderes pessoais nem a promover vaidades individuais nem a causar “espiritualidades”. Ninguém tem um dom de governo para dominar sobre outros ou um dom de misericórdia para causar dependência nas pessoas ou um dom de pregador para que outros o saúdem e obedeçam. Antes cada qual usa seu dom para espelhar a imagem de Cristo para que se curvem ao seu senhorio, para que dependam de sua misericórdia, para que sigam a sua voz, e assim em diante.

Os diversos dons mencionados em cinco listas no Novo Testamento não são definitivos, mas descritivos; não são exaustivos, mas exemplares. Principalmente, não são desenvolvimentos de características pessoais autônomas, antes, descrevem o caráter de Cristo e sua virtude a nós comunicada pela prática da Palavra de Deus. O Messias é o Deus Homem, manifestação plena do caráter de Deus imputado aos membros da sua igreja, para conduzir-nos “à estatura do varão perfeito”.

Exegeses erradas e má aplicação hermenêutica têm impedido a igreja de usufruir os dons espirituais. Além do uso errado em função de jogos de poder e de vaidades teológicas, temos dificuldades com indagações honestas e conscientes:
                Houve cessação de alguns dons?
                Há diferença entre dons e talentos?
                Como descobrir qual seja o dom de alguém?

Os problemas que existem para responder adequadamente a essas perguntas, e a outras mais, estão aí por causa de uma falta de coesão dos conceitos bíblicos. Elas não podem ser respondidas isoladamente. Uma forma compreensiva de abordar o tema é fornecida por Vern Poythress, a qual tomo a liberdade de adaptar ao nosso tratamento. Em vez de aceitar os termos de muito do que se discute sobre os dons, Poythress faz um paralelo entre os ministérios de Cristo, de profeta, sacerdote e rei (veja minha abordagem sobre o assunto em Coração e sexualidade, Brasília, Refúgio, 1999, pp. 61-72), e as concessões do Espírito Santo aos ministros da Nova Aliança.

Todos os dons mencionados em Romanos 12, 1Coríntios 12 e Efésios 4 podem ser classificados de maneira geral como proféticos, reais ou sacerdotais. Por exemplo, dons de sabedoria e de conhecimento são proféticos, enquanto que dons de administração, milagres, poderes e curas são reais. Mas alguns dons poderão ser classificados em mais de uma maneira. Por exemplo, curas poderão ser também dons sacerdotais, uma vez que está aí o exercício de misericórdia para com a pessoa sendo curada. Finalmente, funções proféticas, reais e sacerdotais poderão ser expandidas em perspectivas sobre a totalidade da vida do povo de Deus, de maneira que não devemos nos perturbar com aparentes sobreposições. Essa classificação, não obstante, é útil para lembrar-nos de nossa relação com a obra de Cristo e de que nenhuma das listas de dons no Novo Testamento é exaustiva (Poythress, Vern. What Are Spiritual Gifts? Phillipsburg, NJ, Presbyterian and Reformed, 2010, p. 13).

Poythress apresenta três perspectivas dos dons distribuídas em dois andares de uma pirâmide.

1. No andar superior, de autoridade divina, estão dois níveis:
(a) o primeiro, messiânico, é o de Jesus Cristo;
(b) o segundo, apostólico, é o dos homens que ele escolheu para o fundamento da igreja e, alguns, para o registro inspirado do Novo Testamento.
2. No andar de baixo estão níveis sob a autoridade divina:
(a) o primeiro (terceiro no quadro geral) é o nível especial de líderes ordenados com imposição de mãos, para a pregação e ensino da Palavra de modo público e formal, e para o pastoreio do rebanho.
(b) o segundo (quarto) é o nível geral em que estão incluídos todos os crentes, sem distinção de posição eclesiástica, para a realização de todos os atos do sacerdócio universal, para a evangelização (pregação e ensino da Palavra a pessoas e grupos) e para os serviços da igreja e na comunidade.

O estudo aprofundado e expandido está em http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/ .

O Senhor Jesus é o proprietário dos sete Espíritos – como descrito por Isaías: “Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor” (Is 11.12) – e o doador dos dons espirituais – por meio do exercício dos dons crescemos até a sua própria maturidade. Parece-me que os dons são os laços com que Deus ata os fios da graça aos fios da fé para a confecção do manto da justiça de Cristo com que ele vestirá a igreja. Uma urdidura de dar e receber (graça e fé) em que cada dom é exercitado e partilhado até que todos alcancemos a maturidade de profetas, sacerdotes e reis com Cristo.

Considero que os dons, na Bíblia, são sejam definitivos nem exaustivos, mas descritivos. Desse modo, os dons seguem a linha descritiva: ninguém tem o “dom da beleza” senão a de Cristo, do “louvor levita atual” senão o que é concedido a todos, o “dom da humildade”, senão o que a todos é ordenado. Também o dom não é concedido para lucro ou deleite pessoal, mas para abençoar a outros.

Os dons descritos na Bíblia não têm, obrigatoriamente, um caráter de continuidade nem sofrem todos uma força de cessação. Muitos dos dons que Jesus Cristo exerceu, foram utilizados particularmente e de maneira restrita para manifestação da sua vida terrena e como sinais e referendos do seu ministério; muitos outros foram concedidos aos salvos para uso perene (oração, poder e destemor para testemunhar). Da mesma forma, ele concedeu dons aos apóstolos para realizarem certos atos também restritos à manifestação do poder do evangelho em sua fase de fundamentação, e outros que continuaram a ser utilizados depois (ordenação, disciplina etc.). Ele mesmo também deu dons perenes especiais a alguns homens vocacionados para o ministério da Palavra no cuidado e ensino do seu rebanho (iluminação do entendimento da Palavra para aplicar à própria vida e para pregar e convencer, administração, etc). E ele mesmo, no Espírito, concedeu dons perenes a todos os crentes (sacerdócio universal) para o crescimento espiritual e para o serviço e crescimento do corpo de Cristo (todos os dons implicam o uso e usufruto dos mandamentos e promessas de Deus).

Esclarecendo, talentos são capacidades individuais ou corporativas distribuídas a todos os homens pela graça universal. Dons espirituais são capacidades sobrenaturalmente distribuídas aos regenerados mediante os quais o indivíduo e a igreja recebem poder para exercer antigos e novos talentos.
Essa visão dos dons, creio, fornece uma compreensão do assunto que poderá responder à maior parte das indagações a respeito do tema, restando muita coisa a ser tratada sobre alguns dons particulares.

Um ponto extremamente importante é a definição do caráter mutual dos dons (dar e receber). Ninguém tem um dom para si mesmo, mas para compartilhar com os membros do corpo de Cristo, recebendo os dons dos demais. Dessa maneira, cada um ministrando o próprio dom e exercitando os dons dos outros, todos crescem até a estatura de Cristo e o cumprimento da Grande Comissão.

Wadislau Martins Gomes

segunda-feira, janeiro 25, 2016

O JARDIM A MINHA VOLTA


Quando vejo o jardim a minha volta, os manacás e as quaresmeiras em flor, a floresta que ano passado foi queimada, hoje renovando e quase verde, tenho de exclamar: Quão variadas são as tuas obras, Senhor! Daí, penso nas diferentes pessoas que fazem parte de minha vida; as que ajudaram em minha formação por meio de informação ou exemplo, semeando idéias ou exercendo mentoria; as que de alguma forma ajudamos a moldar o caráter ao mesmo tempo em que elas foram e são instrumentos para cunhar, esculpir e polir o nosso. Quando tudo isso me vem à mente, tenho de constatar igualmente a variedade em meio à singularidade da obra de Deus no ambiente em que ele nos inseriu. Quão variada é a tua obra, Senhor (Sl 104.24) – minha alma o sabe muito bem!

Mais um fim de semana com a visita de queridos irmãos amigos cujas vidas se uniram a nossa; sou privilegiada por observar a ação de Deus na vida de cada um, mesmo que humilhada por ver o quanto ainda falta aprender da vida, apesar de já ser “madura” há muito tempo...

Daí, lembro-me das discussões recentes de irmãos sobre posições doutrinárias e a dificuldade de alguns aceitarem a variedade no grande jardim de Deus, a supremacia do amor de Deus que permanece após tudo mais passar (1Co 13.8-10). Penso nas árvores majestosas, nas pequenas árvores das quais já podemos colher doces frutos, dos arbustos que vicejam sozinhos ou em fileira de cercas vivas, das floreiras perfumadas e plantas rasteiras que guardam a umidade do solo enquanto mantém a terra no lugar e enfeitam o chão. Deus nos colocou a todos num mesmo jardim—não mais o Éden, mas o jardim do planeta terra, para o cultivar e guardar: cada qual segundo sua espécie, segundo sua tarefa, conforme o querer do Único Jardineiro Perfeito. Penso no vicejar da vida de amigos de todas as tribos, povos e raças, de toda a multiforme variedade em que cada um foi plantado pelo Senhor:

— Advogadas que trabalham para refletir o sol da justiça nos relacionamentos, nas questões e contendas e nos acordos;

— Boleiras, bancárias e bailarinas que somam, acrescentam, equilibram e multiplicam sabores e valores;

         — Cozinheiras de acampamentos e consagradas chefs que não se esquecem de alimentar a alma com a Palavra;

         — Desenhistas e dentistas que usam os detalhes para glorificar a Deus e dar bem-estar a seu povo

         — Educadoras, escritoras, enfermeiras, engenheiras, escriturárias, e estagiárias, todas com tarefa de comunicar, construir, consolidar graça e verdade no que fazem;

         — Financistas e festeiras, filósofas e fiandeiras, tecem sonhos e fios que amarram, fios que se partem, fios que firmam – daí em diante, podemos passar por todo um alfabeto de atividades e condições da existência humana – nós mulheres cristãs estamos inseridas em um planeta onde, “plantadas na casa do Senhor, mesmo em vindo a seca, vicejamos”.

Saindo da sombra verde do jardim, lembro de outra metáfora para nossa vida: a simultaneidade da sabedoria e da simplicidade. Provérbios 1.2-7 fornece o propósito (que tomo humilde e proporcionalmente para mim) de se escrever:

Para aprender a sabedoria e o ensino; para entender as palavras de inteligência; para obter o ensino do bom proceder, a justiça, o juízo e a eqüidade; para dar aos simples prudência e aos jovens, conhecimento e bom siso. Ouça o sábio e cresça em prudência; e o instruído adquira habilidade para entender provérbios e parábolas, as palavras e enigmas dos sábios. O temor do SENHOR é o princípio do saber.

Ao enviar seus discípulos a um mundo em que lobos vorazes espreitam as ovelhas do seu rebanho, Jesus disse:

Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas. E acautelai-vos dos homens; porque vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas; por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios. E, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que haveis de falar, porque, naquela hora, vos será concedido o que haveis de dizer, visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós (Mt 10.16-20).

Está faltando muito desse equilíbrio de simplicidade e sagacidade em nossa vida cotidiana—quanto mais nos grandes momentos decisivos que enfrentamos. O apóstolo Paulo lembrava isso no fim de seu tratado teológico-doutrinário na carta aos Romanos:

Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos. Pois a vossa obediência é conhecida por todos; por isso, me alegro a vosso respeito; e quero que sejais sábios para o bem e símplices para o mal. E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás. A graça de nosso Senhor Jesus seja convosco (Rm 16.17-20).

Percebe que esse equilíbrio de simplicidade e sabedoria está novamente ligado a uma luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, a graça e as desavenças? Na segunda carta aos Coríntios (2Co 11.3), ao defender seu ensino, Paulo lembra o engano da Serpente no Éden versus a simplicidade e pureza que devemos a Cristo:

Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo.

Voltamos a um jardim, a questões de mente e coração, que podem ser cultivados e guardados ou afastados da verdade! O escritor bíblico compara essa simplicidade ao pão sem fermento que se come por ocasião da Páscoa:

Não é boa a vossa jactância. Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda? Lançai fora o velho fermento, para que sejais nova massa, como sois, de fato, sem fermento. Pois também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. Por isso, celebremos a festa não com o velho fermento, nem com o fermento da maldade e da malícia, e sim com os asmos da sinceridade e da verdade (1 Co 5.6-8).

O tema da sinceridade está sempre ligado à santidade e à verdade (por exemplo, 2Co 1.12; 2Co 2.17; 2Co 8.8; Fp 1.10, Fp 2.15). Nosso cultivo e nossa preservação do jardim não existem sem a santidade simples que resulta da ação da Palavra de Deus em nossa vida. O salmista já expressava isso que o autor de Gênesis descreveu desde os primórdios: “A revelação das tuas palavras esclarece e dá entendimento aos simples” (Sl 119.130). É simples assim. É assim complicada a multiforme, variada vida que vivemos? O autor de Hebreus desafia a cada cristão de todas as eras, porque temos um Sumo Sacerdote fiel:

aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura. Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras.

Está aí o desafio. Por mais variada e complexa que seja nossa vida, voltemos à simplicidade do Evangelho. Desafio meus amigos, minhas amigas a guardar, considerar e nos estimular!

Elizabeth Gomes

quinta-feira, janeiro 21, 2016

A RESPEITO DA NOTA PÚBLICA SOBRE O DEBATE ENTRE CALVINISTAS E ARMINIANOS


Paulo repreendeu a Pedro, face a face, quando este se fez reprovável por abraçar a heresia dos judaizantes. Com coragem, o fez sem estabelecer juízo sobre sua salvação. Com relação a Himeneu e Alexandre, blasfemos, Paulo os entregou a Satanás, certamente segundo o preceito de 1Co 5.5, de preservação da alma. Ninguém poderá proferir juízo sobre a salvação de quem professa a Cristo como Senhor e Salvador, conforme a Escritura – tal como dito por Jesus, na parábola do joio e do trigo (Mt 13.18-27). Nesse sentido, o juízo será herético.

A Nota Pública em nada abandona posições nem enseja alianças nem pede que não haja debates, mas concorda em rogar que cessem as contendas carnais. Eu afirmo minha fidelidade à Bíblia e entendo que a Reforma protestante tem o calvinismo como companheiro dessa fidelidade. Não aceito o arminianismo, mas não me atrevo a proferir juízo sobre a salvação de seus adeptos. Da mesma forma, não aceito a heresia do falso testemunho e das discussões carnais que negam a fidelidade a Cristo e à Escritura.

Repito, aqui, editado, uma publicação de 2010.

Depois de um sonho em que eu me defendia de um intruso em minha casa, fiquei com aquela peça do Chico Buarque na cabeça: “Hoje eu sonhei contigo e caí da cama..." (“Não sonho mais”). Mais tarde, como o cheiro da feijoada do João Ratão em o Casamento da Dona Baratinha, o som foi entrando pelos meus ouvidos, tomou conta da atitude, tomou conta da mente, tomou conta de tudo. Acordei com esse sentimento enroscado na idéia.. Veja só! Eu velho, a esta altura já devendo ser bom de casa e de rua, ainda sonho com sentimentos de injustiças covardes, que só me pegam quando estou dormindo. Essa é de matar, não é?

Exatamente porque é de matar, é que temos de lidar com a ira pecaminosa. É isso aí: Ira mesmo! Certo que há um tipo de ira que tem o seu lugar. A ira está para a dor assim como a misericórdia está para o amor. Trocando em miúdos, a ira é boa e louvável enquanto é um sentimento de que alguma coisa está errada (“Irai-vos e não pequeis” – o negócio é não pecar, pois senão, é o diabo; cf. Ef 4.26-27). É como a dor, esse incômodo que impede que eu vá além dos meus limites e me fira, mas que, quando rompe seu próprio limiar, dói mais do que dente do siso encavalado. Quando o diabo pega, a ira vira amargura e caruncha a cabeça, ressentida, como cisco no olho que mesmo depois de tirado ainda raspa. A solução cristã é sobrepor o desafeto com a redenção que há em Cristo Jesus. Há uns dois ou três versículos, na Bíblia, que, se você se lembrar deles na hora agá, até ajuda: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1); “Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14); e “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44). A questão é como fazer para amar aquelas pessoas que claramente não permitem ser amadas? Como amar meu inimigo? Parece pesadelo! Mas, não é para desesperar. Se Deus despertou a mim, irado pecador, ele poderá acordar a qualquer um. E ele quer. Por isso mesmo, juntamente com suas promessas, ele fornece mandamentos; aquelas motivam o coração e estes nos capacitam a mudar o comportamento.

Pense um pouco comigo sobre dois mandamentos do Decálogo (usei o termo, agora, só para ver se você não estava cochilando – são os Dez Mandamentos, ô): o sexto mandamento, “Não matarás”, e o oitavo, “Não furtarás” (Dt 5. 17, 19). O primeiro é mais simples. Entendendo corretamente as ordens bíblicas aparentemente antagônicas, como de não matar e de matar, o bom intérprete conclui que tem mais coisa aí. Com efeito, o termo hebraico usado no texto é ratsah, que tem o sentido de “tomar nas mãos, voluntariamente, o direito de tirar a vida ao semelhante”, mais do que o sentido de homicídio acidental ou de legítima defesa (pessoal ou institucional, como em caso de guerra ou de pena capital). Ora, esse cara que de quem gratuitamente possa não gostar, ou que me ataca, é meu semelhante, criado à imagem de Deus, a quem não tenho o direito de roubar a vida. A promessa do Senhor é que a vida procede de sua graça, e que o respeito à vida do outro pressupõe o valor da minha própria vida. Não poderei matar aquele a quem Deus criou assim como não poderei matar a imagem de Deus plasmada em suas criaturas. Não poderei matar seu caráter por meio do ódio ou da maledicência (“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”, 1Jo 4.20; “Todo aquele que odeia a seu irmão é assassino”, 1Jo 3.15; “todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento”, Mt 5.22).

O segundo, o oitavo mandamento, é um pouco mais complicado. “Não furtarás”, não diz respeito à simples apropriação indébita (ainda que esse crime seja igualmente condenado por Deus), mas está mais próximo do sentido de sequestro. A melhor ilustração disso é o caso de José, sequestrado e vendido por seus irmãos em função de lucro pessoal. O Deus que nos libertou da escravidão do ambiente decaído em que vivemos, da esfera de morte à espreita dentro de casa e nas ruas, e que nos remiu do cativeiro interior que nos devora de desejos de prazer e de poder, ele mesmo não quer que o homem criado para a liberdade se torne escravo de homens. Como é que eu, na mesma terra e sujeito aos mesmos troncos e barrancos do caminho, posso pensar em controlar o homem que Deus criou para sujeitar, cultivar e guardar as suas obras? Quantas vezes, eu sequestro o bom nome de alguém e só devolvo se o resgate for bastante para elevar meu nome! Isso, e mais o fato de que me deixo levar pela competição para ver quem é mais desgraçado.

Há algo mais importante do que toda a importância que essas coisas têm. É o fato de que as razões de Deus para as promessas que mexem com o homem interior e os mandamentos que capacitam a operar no ambiente externo têm maior significância: Deus é gracioso e deseja que o nosso relacionamento com ele seja de íntimo conhecimento da verdade em amor. Seus mandamentos, ainda que contenham forte ênfase moral, não são legalistas, mas éticos; e suas promessas não são vazias, mas plenas de cumprimento. É isso que está escrito: “Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos” (1Jo 5.2); e

Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude, pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo (2Pedro 1.3-4).

Exatamente aqui é que está a casa de marimbondos. Com tais princípios motivadores por dentro e tais disposições por fora, como é que fica nossa vida em um mundo não apenas decaído por causa do pecado, mas ainda averso às virtudes cristãs, inimigo de Deus e dos homens (pois a advertência vale para gregos e troianos: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos”, Gl 5.15)? Como crer nas promessas e obedecer aos mandamentos de Deus, com tanto zumbido de ameaças por dentro e por fora?

Por um lado, há a apatia medrosa dos cristãos que deixam de exercer o seu papel profético e se acomodam à faina dos vespeiros à cata do mel de flores murchas que o século planta em cada esquina. Na poética bíblica, não experimentam a vida que recebemos do amor e da misericórdia de Deus:

Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais (Ef 2.1-3).

Por outro, há a dura realidade de que não é por que eu seja paranóico que não tenha gente me perseguindo. Também está escrito, nas palavras de Jesus: “No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).

Como viver com um barulho desses? Olha a realidade prática de confiar ou não nas promessas de Deus e de obedecer ou não aos seus mandamentos. “Não matarás.” Assassinato é tão comum que ninguém mais liga. Não é que não ligue de ser assassinado. Afinal, o que é que você prefere: ser pobre e doente ou rico e com saúde? O caso é que picada de marimbondo no dedo dos outros tem gosto de mel. Furto de honra e assassinato de caráter corre à solta.Um mata o corpo com uma espada, outro com pó, outro ainda com idéias – contra Deus, pretextando piedade; outros mais, com a língua falada ou escrita. Onde fica a beleza pés dos que anunciam as boas novas? A vaidade do leque de pavão, em vez de servir de atrativo, apenas exibe a feiúra dos pés. A esperança vai cedendo lugar ao cinismo e, quando percebemos, já fizemos tanta cera em termos de quem somos e do que fazemos que só nos restará exibir o ferrão e entrar na festa.

“Não furtarás”. Grande parte das vezes, deixamo-nos sequestrar ou somos seqüestrados, e nos quedamos reféns de atos ou causas que nada têm a ver com a vida justa e boa. A coisa piora quando isso vira “virtude” do jogo eclesiástico. Hoje, sem projeto de sucesso pessoal ninguém vence, nem nas câmaras nem nos átrios; e a moçada segue os passos dos bem sucedidos, cantando: “Tropeça aqui, oi, cai acolá, mas depressa levanta e começa a cantar...” Somos sequestrados por figuras carismáticas sem caráter, líderes astutos, liderados matreiros, mentirosos anônimos, reveladores do pecado alheio, críticos de porta de igreja e tanto louvor mais. De arrependimento e santidade, pouco se fala. Uns caem e não se levantam, outros julgam e não querem ser julgados; a verdade é chamada de mentira e, a mentira, de verdade – e nós fingimos que ninguém falou conosco. Olha que tem filósofo andando com lanterna acesa à procura de honestidade. Eu sei, eu sei que sempre foi assim. Mas entre cristãos? Na igreja? Em que é que o mundo, que tem o direito de nos criticar (“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros”, Jo 13.35), deverá crer: no testemunho de nossas palavras ou no de nossos atos? Certamente crerá na incongruência! Se os assassinatos de caráter e os sequestros da alma não derem uma parada, como é que prosseguiremos, convidando gente para vir a Cristo, a cabeça da igreja? O que é que convidamos o mundo para ver na igreja: nossa boca, nossas mãos, nossos pés e nossos olhos? Não se engane, o que falamos, fazemos, aonde vamos e o que consideramos – tudo procede das fontes do coração (cf. Pv 4.10-27).

Agora, neste início de ano, eu faço um voto: prometo que não sonho mais essas coisas; não irei mais para a cama depois de comer iras amargas e indigestas; vou sonhar com você sem cair da cama; sonhos bons, coloridos. E quando em meus sonhos eu for visitar os seus, irei desarmando, munido apenas do resgate que Jesus pagou ao Pai para que fôssemos um nele e com ele. Bênçãos.

Wadislau Martins Gomes