domingo, fevereiro 14, 2016

MISSIONÁRIOS DE SEGUNDA GERAÇÃO



-- É uma temeridade querer criar filhos nesse fim do mundo, sem os mínimos recursos. Não quero saber de neto bugre. Vocês estão jogando para as traças a todos os recursos que eu providenciei a duras penas, toda a educação primorosa que receberam. Com o estudo que você tem, poderia ser importante na vida.

A mãe  que sempre lutou para vencer no mundo profissional estava apavorada com a idéia dos filhos irem a um campo missionário distante. Como não conseguia convencer a filha adulta, apelou para a possibilidade de netos nascerem no meio da selva. Repetia a ladainha de tantos outros que  temem que as crianças de missionários sejam privadas de todas as coisas boas da civilização.

Vinte anos depois, sem ter feito cursinho, sem ter os benefícios da civilização, o “filho bugre” neto dessa senhora entrou numa prestigiosa universidade, e desenvolveu sua carreira acadêmica com nota máxima. Era alegria e motivo de gratidão dos pais que continuam ativos no trabalho para alcançar um povo “que não têm nenhuma importância no mundo e nem aparece no mapa do Brasil”. Estou falando de filhos de missionários. O preconceito de muitos familiares cai por terra, e a senhora avó descrente (se bem que ela, frequentadora ativa de igreja, rejeite esse rótulo) descobre que o neto que veio visitá-la tem postura simpática e inteligente.

Um dos argumentos que este mundo pós cristão usa contra o trabalho missionário é que os filhos serão privados da educação, do convivio com pessoas de seu próprio ambiente de origem, de qualquer possibilidade de crescer e se tornar “alguém” na vida. Aqui não ouso oferecer uma pesquisa científica do trabalho missiológico dos últimos anos. Mas uma olhada de relance na vida das pessoas que optaram por uma dedicação plena, servindo a Deus num “ministério” e ao próximo em campos distantes que divergem da “vida normal” de classe média ocidenta mostra que bom número dos filhos de missionários e pastores, longe de serem prejudicados pela dedicação a Cristo de seus pais, foram abençoados e conseguiram brilhar além de qualquer de seus pares educados no mundo competitivo de cultura pós moderna. Descubro ainda que muitos grandes servos de Deus no cenário mundial e em nosso próprio país tiveram a vida “errática e acidentada” de filho de missionários. Pessoas a quem consideramos mentores e marcadores da vida cristã, como Dr. Russell Shedd, Dr. Davi N.Cox, a Sra. Edith Schaeffer, eram todos filhos de missionários, criados por pais que entregaram tudo para servir a Deus em meio a um povo que não era de sua origem. É surpreendente o número de missionários de segunda geração (ou terceira, (e como o caso da família Gordon, que fundou o hospital evangélico de Rio Verde, vai para a quarta geração de servidores; os filhos e agora netos dos Cox estão engajados no ministério cristão de tempo integral) que, com dedicação e alto padrão de excelência, continua missionária bivocacional.

Para o cristão reformado e missional, não existe uma casta à parte dos que estão no trabalho missionário  diferente de qualquer crente em Jesus Cristo que desenvolve sua profissão coram deo. O livro  “O chamado” de Os Guinness, elucida bem nossa posição. Somos todos chamados para amar e servir a Deus e ao próximo, quer em vocação “secular” corriqueira quer em serviço eclesiástico ou paraeclesiástico de tempo integral. Como servidora no lar e tradutora de livros, ou minha amiga médica servidora pública que tem também clínica particular e é mãe de crianças ativas, ou minha amiga que abriu mão de um casamento há cinquenta anos, já trabalhou com três grupos indígenas traduzindo a Palavra de Deus e elaborando cartilha prática para um pequeno povo brasilíndio antes ignorado—nossa missão é onde estamos, no ambiente em que Deus nos coloca, vivendo cada dia comum, tendo em vista a eternidade. Alguns de meus amigos gastaram anos de preparo e hoje estão “no meio do mato sem cachorro”—que aos olhos do mundo corrupto e cheio de sofrimentos constantes parece um “desperdício”—mas têm em vista valores que não podem ser roubados e a percepção de valor pessoal com peso de glória. Os Norval e Lau, Cléo e Raquel, Fábio e Lucila têm brilho para desenvolver um trabalho profissional que marque o país—usam, porém, a profissão e o preparo para ajudar povos desprezados e esquecidos a conhecer e compartilhar a glória de Deus. Outros casais cristãos vivem seu ministério como advogados, servidores públicos, pastores e professores, odontólogos ou nutricionistas, também demonstrando a glória de Deus em serviço ao próximo. Quer sejam sustentados financeiramente pelo fruto do próprio trabalho quer por igrejas parceiras em sua missão, têm a consciência de que são servos, não donos do mundo—e o fazem com dedicação total. Seus filhos aprendem e imitam mãe e pai em missão.

Alguém poderá enumerar as desvantagens de os filhos crescer sem frequentar as escolas de vanguarda da cidade. Mas esses meninos têm escola de línguas in natura, geralmente falando mais que um idioma sem seus pais pagarem um centavo para garantir professores de fala nativa. Às vezes os próprios pais missionários educadores dão a seus filhos ainda bem novos, além do currículo exigido pelo MEC, aulas de antropologia prática, linguística aplicada, e teologia bíblica para seus rebentos—sem a presença de bullying, as tentações de abusos da televisão e internet, e certamente sem as distorções que nossos jovens da cidade testemunham diariamente em suas escolas. Claro, chega uma hora que o filho tem de estudar em um centro cultural na cidade—mas viveram a cosmovisão cristã de seus pais missionários antes de ser inseridos na roda viva da descultura brasileira.

Pode ser que pais missionários negligenciem ou destratem seus filhos, por estarem ocupados demais nas coisas do reino de Deus? Sim, é possível, mas é mais provável maior negligência da parte de pais que dividem a vida entre o secular e o religioso no mundo “normal” de carreira profissional, pelo acúmulo de bens e de carga horária longe de casa, que sacrifiquem seus filhos e o próprio casamento. Dedicar-se ao missional condiz bem com ver sua primeira missão depois de glorificar a Deus como sendo ministrar em amor e bondade à família—o que dá exemplo de prioridades e princípios para aqueles a quem ministram.

Os filhos de missionários podem sentir que faltou dinheiro, conforto, recursos porque seus pais escolheram uma vida de sacrifício? É possível se ressentirem—se os pais deixaram de contar as bênçãos e se lamentaram do que não tinham ou não puderam fazer ou dar aos filhos. Porém, se a atitude dos pais for de enumerar as misericórdias do Senhor diante dos filhos e do mundo, considerando o privilégio de serem embaixadores do Rei dos Reis, sem a ganância de querer mais, transbordando do contentamento em toda e qualquer situação, esses jovens não vão ressentir as “faltas”que presenciaram. Isso vale para missionários transculturais, bivocacionais, ou crentes comuns em seu cotidiano que se enxergam como servos do Senhor quer como peões quer príncipes no mundo que Deus criou. Tem muita gente reclamando de crise e escassez num mundo onde escolheram desprezar os tesouros eternos—sem o atenuante do obreiro cristão que se descreve como  “nada tendo, mas possuindo tudo”.

Nem todo filho de missionário ou pastor nem mesmo do Seu Mário Crente Comum  é cristão comprometido com a Palavra de Deus. Sabemos de filhos de missionários que, rebeldes, deram muita dor ao coração de seus pais. Deus não tem netos—só filhos dos que creram em seu nome. Mas os filhos da promessa têm a vantagem de crescer em ambiente onde a graça do pacto de Deus os aninha e perturba até o ponto da conversão. Muitos filhos rebeldes são exatamente aqueles que mais impacto terão para o reino quando se convertem. Tais fostes alguns entre vós...


Há também aqueles incrédulos—mesmo entre chamados cristãos--que argumentam contra educar filhos missionalmente porque querem mesmo derrubar qualquer parâmetro “fundamentalista cristão”—preferem o fundamentalismo politicamente correto de vale tudo (exceto o cristianismo bíblico) de fazer as próprias escolhas sem ser tolhidos por Deus, igreja ou consciência cristã. Presos pelas cadeias do pensamento do mundo que jaz no maligno, atolam e se debatem na lama enquanto denigram os que educam na palavra em meio a culturas contrárias, preferindo assimilar vícios e negar as virtudes do ensino do livro de Deuteronômio bem como de Jesus que disse: “indo por todo mundo, preguem, batizando, ensinando...” Ignoram a promessa: “Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”.

Elizabeth Gomes

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

PRAZER MOMENTÂNEO

De uma série de folhetos escrito por
diversos autores, dirigidos aos alunos
da Universidade Mackenzie.

Há quem pense que cristão não tem alegrias nem se dá ao luxo de prazeres. Ao contrário, um texto do Livro dos crentes, a Bíblia, diz ao jovem que se alegre na sua juventude e tenha prazer na sua mocidade, que satisfaça os desejos do seu coração e que agrade seus olhos. Tudo de bom, não é? Só que isso não significa liberação geral.

   A alegria não pode ser a máscara do choro
        nem, o prazer, a antecipação da dor.

Afinal, quem gosta de choro e de dor é viola. Assim, para manter a autenticidade da alegria e do prazer, o autor do texto, Salomão, prossegue, dizendo que toda alegria e todo prazer devem ser regrados por uma boa consciência diante de Deus, a fim de não virar desgosto de coração e dor da carne. [1]

Como disse esse sábio Salomão, o negócio de prazeres imediatos sem mediação de boa consciência nunca mede esforços nem consequências. Há alguns anos, saindo do prédio onde eu lecionava, logo ali na movuca da esquina, dei de cara com o filho de um amigo segurando uma garrafa de vodca. Ele me olhou como que esperando não sei quê, e disse: “É água. Tô só fingindo”. Saí meio rindo meio apreensivo. Afinal, já fui moço e tenho juízo suficiente para não dar uma de censor para a juventude. Confesso, no entanto, que o meu riso teve um tom crítico, especialmente com o cheiro acre de erva queimada, no ar, e o meu quase medo de esbarrar o carro numa perna estudantil. O que é que o cara estava querendo? Impressionar? Quem? Pra quê?

Se você quiser entender a dinâmica dos prazeres imediatos e a do verdadeiro contentamento, terá de manter em mente o mapa das motivações e dos desejos do coração. Esses são os temas-chave da vida – há sempre uma motivação e um desejo do coração por trás de todo comportamento. Um professor e amigo, Ed Welch, disse que o mundo dos prazeres imediatos é como o mundo dos relacionamentos mais próximos. A gente entra neles com todos os tipos de expectativas e esperanças. Gostamos de como nos sentimos na companhia de uma e outra espécie de droga, mas quando nos estendemos no relacionamento, começamos a perceber que há uma troca a ser feita. Qualquer que seja a droga (álcool, maconha, picada ou pó), há uma cobrança de cada experiência e de cada sentimento. O preço a ser pago é sempre maior do que o barganhado – mais aí já é tarde. Estamos comprometidos para a vida. Se permanecermos no compromisso, estaremos escravizados (que é o sentido de conjugal) se sairmos dele, seremos sempre um “ex-alguma coisa”.

O cristianismo da Bíblia não trata do uso de drogas por meio de moralismo, pois considera o próprio moralismo como qualquer droga, cheio de promessas e de nenhuma liberação. Pior, o moralismo escraviza por meio de exaltar a vaidade para, no final, agir exatamente como as drogas, dando um tombo na pessoa. Nas drogas, você será um “drogado”, saindo dela por sua própria vontade, você será drogados “de si mesmo”, cheio de vento e disposto a outras muitas vaidades. Poderá ser que encontre algum tipo de sucesso da empreitada de evitar ou de sair do engano do prazer instantâneo. Por isso mesmo devo deixar bem claro que uma pessoa somente poderá lidar de modo pleno com a questão dos prazeres imediatos – drogas, sexo livre, e toda espécie de mau-caratismo, seja para evitar entrar num compromisso firme ou para sair dele – por meio de uma transformação espiritual. Sem isso, será sair de uma viagem ruim para entrar em outra. Quer você esteja com uma garrafa de água, fingindo ser bebedor de vodca já pisando alto ou caçando frango, quer você tenha abandonado a chupeta, você estará fingindo ser o que não é. Fingirá alegria, fingirá ter prazer nas coisas, mas sem contentamento.

   A fim de encontrar satisfação pessoal verdadeira e a fim de evitar 
   ou sair de uma roubada você terá de conhecer suas próprias motivações, 
   conhecer seus desejos, e conhecer o contentamento verdadeiro.

Conhecendo as motivações do coração
                Pense um pouco sobre o que é que motiva o seu coração. Como disse Pascal, ele tem razões, e não é sem razão que o coração físico é figura do aspecto central da pessoa. Estende sua ação interior por todo o corpo e aparentemente reage ao ambiente batendo mais forte ou mais fraco. Aparentemente, digo, porque a pessoa não é dividida, e nenhuma de suas partes opera em isolação. É nele, contudo, que sentimos as mudanças do comportamento do corpo e da alma. Por isso é que se fala de motivos do coração. São motivos internos que também reagem ao ambiente externo. Alguns desses motivos são básicos e universais, isto é, estão na raiz dos nossos sentimentos e comportamentos, e todo mundo têm.

O cristianismo da Bíblia aponta para a pessoa humana como sendo criada por Deus com o propósito de refleti-lo e, assim, ser autêntica e contente com a própria condição. Dá para ver que hoje a coisa não é como deveria ser. O ser humano foi corrompido pelo pecado e vive com falta do conhecimento de seu Criador e de seu propósito como criatura. Nessa base, as pessoas são motivadas a procurar esse conhecimento.

O dilema humano nessa condição é tratado pela revelação de Deus como sendo de morte e de cegueira. A pessoa está morta espiritualmente e cega para as coisas de Deus. Num sentido, ela conhece a Deus porque a vida que tem no corpo é alentada por Deus que lhe dá, até mesmo, a respiração; noutro sentido, não poderá conhecê-lo se ele não se manifestar. Vem daí, então, que o coração sem Deus vive em um vazio interior, vendo o mundo exterior, nas palavras de Vinícius de Morais, como “bares repletos de homens vazios” (e olha que de copo e de vidas vazias o poeta entendia).

Motivados interiormente por um vazio existencial e exteriormente por tendências sociais formuladas por pessoas vazias, o que resta é repensar a natureza da vida que experimentamos e imitar as vidas de pessoas que igualmente se repensaram.

   Alguns têm motivações mais altas, outros, mais baixas, 
   mas ninguém poderá ir além da própria estatura moral adquirida 
   no conhecimento de si mesmo.

mal, num ? E piora! Sem um paradigma maior para refletir, refletimos o quarto escuro do nosso vazio interior e/ou o escuro do universo. É o oco do peito ou o buraco negro do lado de fora. E Tudo isso não ocorre sem peso. Tudo envolve a gente. Nossas motivações estão ligadas às pessoas. Tem gente que vive se protegendo de pessoas, tem gente que vive se distanciando de pessoas, e tem gente que vive contra as pessoas. Na verdade, esses movimentos, conjuntamente, fazem parte da dinâmica do indivíduo, mas um é caracteristicamente mais visível no comportamento.

De maneira geral, sem cair no risco de reducionismo, para conhecer suas motivações básicas você poderá se perguntar: o que é que eu quero?
(1)     Ficar na minha, vestido de esquisito, num canto, tentando puxar as próprias rédeas para ver se o pessoal nota e segue?
(2)     Ser a alma da festa, o sábio do rei ou o bobo da corte, que enche a cara ou enche os caras, mas segue, obsequioso?
(3)     Ser o chefe do grupo, na técnica ou na marra, líder da torcida e do esculacho?

As respostas, dadas de maneira consciente, honesta, proporcionarão uma idéia dos motivos do seu coração. Você poder tentar controlar seu comportamento, mesmo que seja para não passar vergonha, chamar a atenção ou dar uma de não tô nem aí (porque você está ali!), mas, fazendo isso, já teve seu comportamento controlado. Você pode tentar agradar as pessoas, mas jamais conseguirá agradar a todos, pois teria de ter mil caras para tanto gosto diferente – e ninguém gosta de gente de duas caras. Você pode, ainda, tentar mandar nas pessoas, mas terá de admitir que autoridade é força de caráter e não ferramenta de manipulação. No final das contas, controle, agrado ou ditadura estão todos ligados à manipulação.

O que é que essa tentativa de manipulação tem a ver com a busca do prazer imediato? A primeira parte da resposta tem a ver com a ferramenta social do admirável mundo novo, de ídolos substitutos ou de promoção. Autores, artistas, atletas, pais, professores, todos têm algo em que se encostar ou para alavancar a vida: comida, bebida, fumaça de baseado ou de óleo diesel, remédio sem prescrição ou bolinha. Crescendo nesse meio social, quando chega o tempo o voo solo, só podemos repetir o comportamento treinado. Isso por que somos socialmente motivados. A outra parte da resposta é a que se segue.

Conhecendo os desejos do coração
                Como dizia o bêbado do bairro, entre o engasgo e a careta, “Essa mardita é da boa”. A gente sabe que bolso de bêbado não tem dono, que depois do pó ou do pico a festa acaba para os sentidos, que o desvario sexual avacalha qualquer relacionamento – mas a gente gosta! Por quê? É claro que é porque é gostoso! E, no mínimo, por duas razões: uma é que poderá ser que a coisa seja gostosa e, a outra, que o nosso gosto seja deturpado. Não tem gente que come sei lá o quê?

                Os desejos do nosso coração são, coerentemente com as nossas motivações, interiormente nutridos e socialmente aprendidos. É impossível dizer onde começa porque é sistema de retroalimentação. Os desejos do meu coração são formados segundo minhas interpretações da realidade – na família, na vizinhança, na escola, na sociedade – e, daí em diante, elas dominam meu cenário de vida. Depois que o gosto foi criado, e só pensar que a boca já saliva.

Nós gostamos das drogas “sociais” por causa do que elas fazem por nós, ajudando-nos a lidar com nosso desejo de isolação (para longe de pessoas), com nosso desejo de pertencimento (para perto de pessoas) e com o nosso desejo de domínio (contra pessoas). Um pouco de droga pode fazer maravilhas para qualquer dessas motivações – até mesmo para caspa na sobrancelha. Algumas vezes, as pessoas mantêm uma baixa expectação da vida, e vão levando a existência, dopadas. Outras vezes, as pessoas dão de cara com a realidade e se deprimem, planejam mudar, mas o gosto da coisa é mais forte e o próprio sentimento serve de gatilho para o desejo.

   O cerne do problema é que esses ganchos de apoio acabam sendo 
   próteses do nosso ser. Apoios falsos que podem ser físicos (produtos) 
   ou simbólicos (em que até coisas boas podem escravizar alguém
    e roubá-los dos valores maiores da vida).

Nós amamos essas drogas como a um braço ou perna, e não estamos dispostos a removê-las da vida. Temos nossos momentos de ódio do mal-estar que elas podem provocar, e momentos de ambivalência, mas, no final, voltamos a elas porque queremos. Depois de um tempo, passamos a amar mais os ganchos falsos, as próteses, do que o nosso próprio corpo.

O Welch disse que isso é ambos, a lógica e a insanidade do abuso de drogas – e que essa parece ser a lógica e a insanidade da condição humana. Tal condição não se limita a abuso de drogas e álcool. É o mesmo princípio por trás da procrastinação, dívidas, excesso de comida, gastar tudo num jogo, colar na escola, e daí em diante.[2] Uma vez que estejamos escravizados aos nossos desejos, nas correntes de substâncias e de comportamentos, colocamos fé em sua satisfação como fonte de prazer e alívio. O problema com esse modelo é que o pretenso alívio é mero entorpecimento e, o prazer instantâneo, rápido e passageiro, deixando a gente com a boca com gosto de cabo de guarda-chuva ou de corrimão de escada.

Motivações e desejos do coração  
                Normalmente não se pensa do ateu como sendo idólatra – se não tem religião, como cultuar a ídolos? Sequer pensamos que haja ídolos seculares. Você talvez não tenha considerado que tudo o que colocamos como “salvador” para as nossas motivações e desejos trata-se de idolatria. Se você quer ver como um homem não cristão viu essa condição humana, leia o conto de Machado de Assis, Igreja do diabo. No conto, o diabo acusa os adoradores de Deus de fazerem o bem em troca de benefícios. Diz que, de noite, o povo abusa do mal. Deus permite, então, que o diabo troque o mal pelo bem. A partir daí, o mal é a coisa a ser feita. Acontece, porém, que, mostrando a origem boa do homem, o povo começa a sair em secreto, na calada da noite, para fazer o bem aos vizinhos e estranhos das ruas. Esse é que é o negócio – somos todos religiosos, quer ateus quer agnósticos quer religiosos de qualquer crença.

Você poderá, até mesmo, evitar as drogas ou sair delas por si mesmo, como já foi dito. Mas trocar o mal pelo bem, sem Deus, será apenas, como disse Machado de Assis, trocar a renda de uma toalha. A toalha é a mesma. As necessidades humanas que jamais poderão ser satisfeitas pela própria pessoa serão apenas trocadas por necessidades cada vez mais prementes e frustradas. É uma troca de ídolos. A única forma, portanto, de alcançar uma transformação de motivos e de desejos será por meio de conhecer a Deus como Criador e Salvador e, assim, conhecer a si mesmo como criatura.

Deus é conhecido em seu Filho, a Palavra Viva, sua única revelação pessoal, e isso, por meio da sua Palavra, a Bíblia, sua única revelação escrita. Segundo Jesus Cristo, toda a Palavra revelada se resume em “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Não quer dizer amor por si mesmo como base do conhecimento, mas amar a Deus primeiro e, depois, a si mesmo como objeto do seu amor. Quando você conhece o amor de Deus em Jesus Cristo – que  nasceu, morreu, viveu, ressuscitou e reassumiu seu lugar ao lado de Deus – toda a motivação de sua vida muda o lugar de perspectiva.

É uma mudança de natureza, um novo nascimento espiritual que fornece nova visão das coisas.
Aí, sim, seu desejo sofre mudança radicais. Antes, você não podia evitar a escravidão das motivações e desejos do coração. Depois dessa experiência, você ainda lutará contra as motivações do antigo coração e ainda desejará as coisas gostosas da vida. Mas terá uma nova consciência por meio do Espírito de Deus e de Cristo habitando em seu coração, e poderá fazer escolhas segundo a verdade e a bondade de Deus. Não haverá mais necessidade de fingir o que você não é nem de ser o que não quer ser, mas haverá, nas palavra da Bíblia, “um novo ser criado à imagem do Filho de Deus”. A comida e o vinho que ele serve, além de gostosos na boca, alegram a alma.

O problema dos prazeres instantâneos não é simples e não poderia ser reduzido, aqui, mas não será de difícil resolução, pois Deus já fez toda a parte complexa. Esta é uma introdução. Se você, no entanto, percebeu aonde estamos e aonde queremos chegar, a Capelania do Mackenzie tem pessoas preparadas para ligar com os aspectos espirituais, teológicos, psicológicos e físicos do problema. Procure um dos capelães. Não haverá juízo precipitado, mas ajuda verdadeira.

Wadislau Martins Gomes
Pastor presbiteriano (jubilado), autor de diversos livros, tradutor e conferencista. Desenvolve estudos e ministério na área do aconselhamento pastoral desde 1973. É professor visitante do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper.



[1] Eclesiastes 11.9-10.
[2] The Journal of Biblical Counseling • Volume 16 • Number 3 • Spring 1998 23

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

O QUE DIZER SOBRE O LOUVOR?


De passagem por mídias virtuais, vi que alguém falava de um tradicional hino de louvor do qual gosto muito. Parei um pouco para ver e ouvir o vídeo. O pregador usava o hino Grandioso és tu (melodia sueca, letra de Carl Gustav Berg, 1885) para exemplificar o mau uso do louvor. Em sua arenga, ele ia, mais ou menos, assim: “Não é meu preferido ... não tenho nada contra ... vejo os céus (estrelas, raios e trovões) e louvo a Deus. Até então, tudo certo. Deus está aí, Então, vem o ‘E quando, enfim, eu for ao céu subindo’ – aí, já não é Deus, mas eu, sendo louvado!” O homem sequer estava errado, pois para errar teria de estar certo na proposta inicial. Ele estava longe de conhecer a Palavra e o hino, cujo verso final diz: “adorarei a quem por mim mostrou tão grande amor”.
Como meia bobagem basta, fui cantar noutra freguesia. Já ouvi e sofri opiniões sobre letras de cânticos tais como “com glórias coroai”, “coroamos a ti, Senhor”, e outros, à opinada de que “o maior coroa o menor”. Sobre hinos que utilizam figuras bíblicas também há nãos-nãos legalistas, por exemplo, “Era seu nome Barnabé”. Além desses, há ruídos e choros contra versos como “tu és fiel, Senhor, fiel a mim”, e um sem número de outros. Todas essas críticas mal feitas deixam de lado o fato de que o uso do termo coroa tem muitos significados, como é o caso de Paulo, dizendo que os filipenses seriam sua “alegria e coroa”. Os salmos estão repletos de cantos de memória dos grandes feitos de Deus na história. A Bíblia está permeada de cantos sobre feitos de homens a serviço de Deus, de cantos sobre experiências de homens com Deus, como é o caso da fidelidade de Deus “à casa de Israel”, e de bendição de pessoas, tal como o Magnificat de Maria.

Críticas são boas quando decorrem de boa hermenêutica da Palavra aplicada a uma boa hermenêutica do texto e das coisas. Juízos poderão ser feitos, por exemplo, sobre a verdade, a propriedade e a beleza do louvor — isso, quando houver conhecimento, sabedoria, prudência e discernimento para tanto — mas jamais baseados em parecer pessoal sem base e tolo.

Em Efésios 1.3-14, Paulo fornece um arcabouço teológico que nos permite estabelecer que o nosso louvor a Deus é tudo o que retrata sua glória a nós concedida, pela graça, em Jesus Cristo, como diz: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo ... para louvor da glória de sua graça” (Ef 1.3,6).

1a. Bênção: o louvor pela escolha para a adoção em Cristo (vv. 1-6)Louvar significa atribuir valor a o que ou a quem de direito. Louvamos princípios de valor, tais como honra, comportamentos, consciência pura, etc. Louvamos coisas a que apreciamos. Louvor supremo, contudo, somente pode ser dado a Deus o doador de nossa herança.
Nossas perspectivas de Deus, do ser humano, e do mundo, sofrem, pelo menos, três desvios de visão. Primeiro, por causa da queda do pecado, confundimos luz com trevas; segundo, o ser humano finito, nem mesmo antes do pecado, pode considerar o infinito de Deus; e, terceiro, por causa do pecado, temos a tendência de adorar a Deus à nossa maneira, como fez Caim. Paulo pede a Deus que sejamos diferentes disso: “para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele”. Ele chama as bênçãos de Deus de revelação do “mistério de sua vontade”.

Nesse mistério infinito Deus nos revela que somos predestinados. A confusão e o alarido do louvor de hoje são provocados por um falso entendimento do Ser de Deus e do exercício de sua vontade. Ninguém louvará a Deus se não estiver certo de que ele é o princípio e o fim de todo propósito, e que ele nos escolheu antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis. Deus não é homem, e sua vontade não é paralela a do ser humano. Antes, nossa vontade está circunscrita a de Deus. De uma maneira, Deus não nos criou dentro do círculo do seu ser, pois ele é transcendente; de outra, ele penetrou o circulo de sua criação por meio da obra de seu Filho “de os tempos eternos”, portanto ele é imanente – o Deus de longe e de perto. Podemos, assim, dizer que Deus habita em um “círculo” infinito que compreende o nosso círculo finito. Por sua vontade fomos criados, por sua vontade fomos escolhidos, predestinados. O repúdio dessa escolha, nega a nossa crença no que Deus revela sobre si mesmo em sua Palavra.

Em outras palavras, Deus não é louvado quando a vida do que pretende louvar não reconhece sua grandeza nem busca a santificação e a irrepreensibilidade do caráter de Deus, em Cristo. Isso implica que Deus não é também louvado quando sua escolha é substituída por uma impossível salvação baseada na escolha humana. Especialmente, fomos chamados para participar do círculo dos filhos de Deus. Fomos predestinados para adoção em Cristo, “para o louvor da glória de sua graça”. A adoção implica em que tudo o que o Senhor Jesus Cristo é para o Pai é-nos conferido pelo pacto eterno. Desse modo, o verdadeiro louvor é prestado por filhos de Deus. Louvar é atribuir a Deus o valor de ser ele O QUE É. Louvar é atribuir a Deus a bondade, misericórdia e fidelidade com que fomos agraciados em todas as bênçãos “nos lugares celestiais” em Cristo.

2 a. Bênção: o louvor pela redenção para manifestação de sua glória (vv. 6-10) — O verdadeiro louvor é sacrifical, isto é, ele não é gratuito. É nascido do sacrifício de Cristo e demanda uma vida sacrifical, de deposição de tudo o que temos e somos. O louvor é fruto de lábios que confessam o nome de Jesus (Hb 13.15). Sacrifícios de louvor significam um amor total a Quem nos amou primeiro. Por isso mesmo, o Filho de Deus, Deus Homem e Homem Deus, é chamado de o Amado.

Por amor, ele nos resgatou para a santificação, tirando-nos de uma esfera de morte para uma esfera de vida. Ele nos redimiu com seu sangue purificador, perdoando os nossos pecados. Tudo isso, diz Paulo, “segundo a riqueza da sua graça” derramada sobre nós em “abundantemente ... sobre nós em toda a sabedoria e prudência”. Deus nos desvendou o mistério da sua vontade conforme segundo o seu pacto proposto em Cristo de convergir nele, no ápice dos tempos “todas as coisas, tanto as do céu como as da terra”.

É significante lembrar que estar “em Cristo” — “nas regiões celestiais em Cristo” e ser “herança” dele e para ele — requer um louvor coerente. O louvor verdadeiro converge em Cristo, em sua doutrina, e não em sua expressão. Nenhum louvor é neutro, isto é, não é obra de arte sem obrigação com linhas de pensamentos culturais, artísticos e daí em diante. Todo louvor proclama uma glória, todo louvor implica uma doutrina, quer sem Deus quer pretextando Deus — o falso louvor proclama a glória do mundo quando rouba dele as estratégias de mercado, as flutuações da moda, etc. Há um só louvor verdadeiro, e este é a expressão da beleza da glória, ou reflexo do caráter, de Deus “na face de Cristo” (cf 2Co 4.6).

O louvor da glória de Deus em Cristo consiste em amá-lo e em amar os que são seus, de tal modo que nenhuma outra paixão, êxtase, regra, e gosto tomem o seu lugar como círculo e centro da vida. Louvar significa amá-lo com extrema gratidão pela redenção, com profunda contrição diante do alto preço de sangue da remissão, e com genuína alegria.

3a. Bênção: o louvor pelo Penhor da esperança eterna (vv. 11-14) — “Deus busca adoradores”, disse Jesus à mulher samaritana. Certamente, ele não os busca porque tenha necessidade, mas porque nós nos realizamos na adoração. Adorar a Deus é comungar sua pessoalidade e derivar dela, em Cristo, a essência de quem somos. Por decorrência, quem louva a Deus em humilde adoração, alcança as alturas de Deus e atinge as profundezas do próprio ser.
Fomos feitos herança, predestinados para usufruir as abundantes bênçãos celestiais segundo a vontade do Deus trino. Somos herdeiros e herança do pacto trinitário para sermos “para o louvor de sua glória”. Isso fala de uma vida de louvor, de um perene louvor no encanto de saber que somos dele e que ele é nosso, e de uma viva esperança. Esperança de que o Senhor Jesus, que, em nosso lugar, encarnou, viveu em obediência, morreu, ressuscitou e ascendeu aos céus, de lá virá fisicamente para nos buscar. Por enquanto, ele habita entre nós e em nós, em seu Espírito. Por ele ouvimos a Palavra, provamos a fé e o arrependimento, fomos regenerados, fomos selados com penhor da nossa herança. Pelo Espírito de Cristo temos comunhão com Deus e com a igreja de Cristo. Pelo Espírito que procede do Pai e do Filho temos a esperança do regate dos herdeiros para a vida eterna. Tudo isso, “em louvor da sua glória”.

Quando alguém louva ao Senhor, deve estar consciente de que não presta culto gratuito (“preço de sangue ele pagou”) nem pretende conseguir coisas caras (“ouro e prata não almejo”). Tudo vem de Deus que já nos concedeu todas as bênçãos necessárias à vida e à piedade (2Pd 1.3). Só resta, ao crente, cantar com o coração e com os lábios: “Quão grande és tu” nas obras de sua criação feitas em Cristo, “dele, por meio dele e para ele”, na obra da redenção em Cristo, na providência para a vida que é agora provida pelo Espírito, no lar, na igreja, e no mundo, na esperança de adorá-lo em presença, corpo e alma em perfeita glória diante de sua glória imarcescível!

Na sequência desta escritura testamental do Evangelho, Paulo rompe em uma oração de prece em que existe uma ênfase no louvor individual e coletivo e congregacional:

Por isso, também eu, tendo ouvido a fé que há entre vós no Senhor Jesus e o amor para com todos os santos não cesso de dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder (Efésios 1.15-19).


Wadislau Martins Gomes