quarta-feira, janeiro 27, 2016

FOI PERGUNTADO POR QUE NÃO FALÁVAMOS SOBRE OS DONS


(Adaptado do livro Sal da terra em terras dos brasis. Brasília, Ed. Monergismo, 2015.)   
 
Um jovem, na igreja, queixou-se: “Eu tenho o dom de pregador, mas ninguém me escuta!” O fato de o moço entender o dom como sendo talento dele pode motivar muita confusão. Ele se esquecia de que é Deus quem dota e quem confere poder aos que obedecem a sua vontade na prática da bênção com que foram dotados. O dom é matéria do Deus trino e as igrejas foram, são e sempre serão aperfeiçoadas segundo o divino querer.

O registro bíblico dos dons espirituais descreve comportamentos que promovem o fruto do Espírito no indivíduo e a cooperação no corpo de Cristo para realização de sua obra – e não se presta a designar poderes pessoais nem a promover vaidades individuais nem a causar “espiritualidades”. Ninguém tem um dom de governo para dominar sobre outros ou um dom de misericórdia para causar dependência nas pessoas ou um dom de pregador para que outros o saúdem e obedeçam. Antes cada qual usa seu dom para espelhar a imagem de Cristo para que se curvem ao seu senhorio, para que dependam de sua misericórdia, para que sigam a sua voz, e assim em diante.

Os diversos dons mencionados em cinco listas no Novo Testamento não são definitivos, mas descritivos; não são exaustivos, mas exemplares. Principalmente, não são desenvolvimentos de características pessoais autônomas, antes, descrevem o caráter de Cristo e sua virtude a nós comunicada pela prática da Palavra de Deus. O Messias é o Deus Homem, manifestação plena do caráter de Deus imputado aos membros da sua igreja, para conduzir-nos “à estatura do varão perfeito”.

Exegeses erradas e má aplicação hermenêutica têm impedido a igreja de usufruir os dons espirituais. Além do uso errado em função de jogos de poder e de vaidades teológicas, temos dificuldades com indagações honestas e conscientes:
                Houve cessação de alguns dons?
                Há diferença entre dons e talentos?
                Como descobrir qual seja o dom de alguém?

Os problemas que existem para responder adequadamente a essas perguntas, e a outras mais, estão aí por causa de uma falta de coesão dos conceitos bíblicos. Elas não podem ser respondidas isoladamente. Uma forma compreensiva de abordar o tema é fornecida por Vern Poythress, a qual tomo a liberdade de adaptar ao nosso tratamento. Em vez de aceitar os termos de muito do que se discute sobre os dons, Poythress faz um paralelo entre os ministérios de Cristo, de profeta, sacerdote e rei (veja minha abordagem sobre o assunto em Coração e sexualidade, Brasília, Refúgio, 1999, pp. 61-72), e as concessões do Espírito Santo aos ministros da Nova Aliança.

Todos os dons mencionados em Romanos 12, 1Coríntios 12 e Efésios 4 podem ser classificados de maneira geral como proféticos, reais ou sacerdotais. Por exemplo, dons de sabedoria e de conhecimento são proféticos, enquanto que dons de administração, milagres, poderes e curas são reais. Mas alguns dons poderão ser classificados em mais de uma maneira. Por exemplo, curas poderão ser também dons sacerdotais, uma vez que está aí o exercício de misericórdia para com a pessoa sendo curada. Finalmente, funções proféticas, reais e sacerdotais poderão ser expandidas em perspectivas sobre a totalidade da vida do povo de Deus, de maneira que não devemos nos perturbar com aparentes sobreposições. Essa classificação, não obstante, é útil para lembrar-nos de nossa relação com a obra de Cristo e de que nenhuma das listas de dons no Novo Testamento é exaustiva (Poythress, Vern. What Are Spiritual Gifts? Phillipsburg, NJ, Presbyterian and Reformed, 2010, p. 13).

Poythress apresenta três perspectivas dos dons distribuídas em dois andares de uma pirâmide.

1. No andar superior, de autoridade divina, estão dois níveis:
(a) o primeiro, messiânico, é o de Jesus Cristo;
(b) o segundo, apostólico, é o dos homens que ele escolheu para o fundamento da igreja e, alguns, para o registro inspirado do Novo Testamento.
2. No andar de baixo estão níveis sob a autoridade divina:
(a) o primeiro (terceiro no quadro geral) é o nível especial de líderes ordenados com imposição de mãos, para a pregação e ensino da Palavra de modo público e formal, e para o pastoreio do rebanho.
(b) o segundo (quarto) é o nível geral em que estão incluídos todos os crentes, sem distinção de posição eclesiástica, para a realização de todos os atos do sacerdócio universal, para a evangelização (pregação e ensino da Palavra a pessoas e grupos) e para os serviços da igreja e na comunidade.

O estudo aprofundado e expandido está em http://frame-poythress.org/modern-spiritual-gifts-as-analogous-to-apostolic-gifts-affirming-extraordinary-works-of-the-spirit-within-cessationist-theology/ .

O Senhor Jesus é o proprietário dos sete Espíritos – como descrito por Isaías: “Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor” (Is 11.12) – e o doador dos dons espirituais – por meio do exercício dos dons crescemos até a sua própria maturidade. Parece-me que os dons são os laços com que Deus ata os fios da graça aos fios da fé para a confecção do manto da justiça de Cristo com que ele vestirá a igreja. Uma urdidura de dar e receber (graça e fé) em que cada dom é exercitado e partilhado até que todos alcancemos a maturidade de profetas, sacerdotes e reis com Cristo.

Considero que os dons, na Bíblia, são sejam definitivos nem exaustivos, mas descritivos. Desse modo, os dons seguem a linha descritiva: ninguém tem o “dom da beleza” senão a de Cristo, do “louvor levita atual” senão o que é concedido a todos, o “dom da humildade”, senão o que a todos é ordenado. Também o dom não é concedido para lucro ou deleite pessoal, mas para abençoar a outros.

Os dons descritos na Bíblia não têm, obrigatoriamente, um caráter de continuidade nem sofrem todos uma força de cessação. Muitos dos dons que Jesus Cristo exerceu, foram utilizados particularmente e de maneira restrita para manifestação da sua vida terrena e como sinais e referendos do seu ministério; muitos outros foram concedidos aos salvos para uso perene (oração, poder e destemor para testemunhar). Da mesma forma, ele concedeu dons aos apóstolos para realizarem certos atos também restritos à manifestação do poder do evangelho em sua fase de fundamentação, e outros que continuaram a ser utilizados depois (ordenação, disciplina etc.). Ele mesmo também deu dons perenes especiais a alguns homens vocacionados para o ministério da Palavra no cuidado e ensino do seu rebanho (iluminação do entendimento da Palavra para aplicar à própria vida e para pregar e convencer, administração, etc). E ele mesmo, no Espírito, concedeu dons perenes a todos os crentes (sacerdócio universal) para o crescimento espiritual e para o serviço e crescimento do corpo de Cristo (todos os dons implicam o uso e usufruto dos mandamentos e promessas de Deus).

Esclarecendo, talentos são capacidades individuais ou corporativas distribuídas a todos os homens pela graça universal. Dons espirituais são capacidades sobrenaturalmente distribuídas aos regenerados mediante os quais o indivíduo e a igreja recebem poder para exercer antigos e novos talentos.
Essa visão dos dons, creio, fornece uma compreensão do assunto que poderá responder à maior parte das indagações a respeito do tema, restando muita coisa a ser tratada sobre alguns dons particulares.

Um ponto extremamente importante é a definição do caráter mutual dos dons (dar e receber). Ninguém tem um dom para si mesmo, mas para compartilhar com os membros do corpo de Cristo, recebendo os dons dos demais. Dessa maneira, cada um ministrando o próprio dom e exercitando os dons dos outros, todos crescem até a estatura de Cristo e o cumprimento da Grande Comissão.

Wadislau Martins Gomes

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