domingo, junho 14, 2015

EVANGELISMO E MISSÔES: FATOS E FALÁCIAS


Contavam meus pais que quando eu era ainda analfabeta (portanto, menor que quatro anos) fui evangelizar uma vizinha, uma senhora velha (mais de quarenta anos de idade!), carola, que não gostava de protestantes ou americanos, mas tinha carinho pelas crianças e me recebeu bem. Eu cantei um ou dois hinos, recitei João 3.16 e Atos 16.31, e fiz um “sermão” como ouvira muitos do meu pai na igreja e minha mãe com a criançada que vinha ouvir histórias do “livrinho sem palavras”. Eu “preguei” com muitas palavras bonitas e instava com a senhora para aceitar a Jesus para poder ir ao céu. a insistia que sempre aceitara Jesus, pois nasceu na sua Santa Igreja e jamais a abandonaria, mas ninguém podia ter certeza de ir ao céu—só os santos que rezam por nós. Perguntei-lhe se ela gostaria jque eu orasse; orei por ela, dei-lhe um beijo e um abraço e peguei a guloseima que ela tinha me dado e fui contente, correndo para casa. Não sei se essa senhora mudou de idéia quanto a Cristo, mas daquele dia em diante eu seria uma missionariazinha, como dizia o hino da APEC, e falaria de Cristo ao companheirinho.

Como a gente grande que eu conhecia, eu considerava a obra de evangelização como parte integral de ser cristã, mas via-a como um ato de “nós” contra “eles”, de “eu sei a verdade da Bíblia e você não sabe de nada”—ainda que eu fosse uma criança disposta, mas um tanto mal-educada, eu praticava o evangelismo de alcançar mais almas com o arco e flecha do roteiro que havia decorado da Bíblia. Cresci um pouco e, apesar de altos e baixos, fui “melhorando” meu desempenho cristão (como dizia o corinho, Sempre melhorando, melhorando sempre no Senhor!). Aos doze anos, sob forte convicção do Espírito Santo, vi que eu não era nada e que precisava de Cristo para tudo, e me entreguei ao convite de me consagrar inteiramente ao trabalho missionário.

Romantizava a vida evangelizadora. Lia muitas biografias—não só as juvenis sobre Livingstone ou a enfermeira Florence Nightingale, como também os livros “adultos” que minha mãe lia sobre Hudson Taylor, D. L. Moody, Amy Carmichael, Isobel Kuhn, Elisabeth Eliot. Para algumas amigas eu era “chata”, mas outras abraçavam meu interesse e formamos até um “Clube em favor dos israelitas refugiados”, quando comecei a me interessar por evangelismo do povo de Deus, após uma missão fazer apelo em favor dos judeus do Iêmen que procuravam voltar a Israel.

Na igreja que passei a fazer parte, comecei aos doze anos a ensinar uma classe de meninas de oito e nove anos, na escola dominical. O evangelho de João—o mais simples e mais complexo dos evangelhos—era tema de nosso estudo. Eu estudava a Palavra, incentivando as meninas a estudar e memorizar também.

Já em Porto Alegre no ensino médio, tive como mentora Thelma Bagby, diretora do Colégio Batista, que me estimulou a participar de reuniões de oração, clube bíblico (nessa época também comecei a frequentar o acampamento Palavra da Vida nas férias), cantar e dar testemunho nas assembléias, e falar de Cristo a outros jovens. Dois incidentes se destacam nessa fase.

Um, eu tinha uma amiga israelita (aliás, tinha muitas amigas descrentes de religiões diversas, e orava para conseguir convertê-las todas) com a qual passei uma noite inteira falando de Cristo, começando do Antigo Testamento e percorrendo o Novo, até participar de inesquecível diálogo:

            --Depois de tudo isso que expliquei, você não entende que Jesus é Yeshua o Messias? Você não quer aceitá-lo como seu Salvador?

            A que ela respondeu:

            -- Está certo, Beth. Acredito que Jesus seja o Messias. Mas nunca vou “aceitá-lo”, como você diz, porque o cristianismo tem perseguido meu povo  por muitos séculos, e minha família jamais poderia aceitar que eu renegasse tudo que sou para seguir uma religião antisemita. Não vamos falar mais do assunto.

Segundo incidente: eu amava minha escola e era destacada entre os colegas do Colégio Batista da minha faixa etária. Havia uma moça na minha classe--para mim era velha, pois já casada e mãe de dois filhos—que voltara a estudar com muito esforço. Eu admirava seu esforço mas não tinha amizade com ela. Um dia, soube que ela estava doente—daí faltav tanto o colégio—e mais tarde, ouvi dizer que ela morrera de câncer. Fiquei abaladíssima, não por ela, nem por seus filhos órfãos, mas porque nunca tinha lhe falado de Cristo, e com certeza ela morreu e não foi ao céu. A letra do hino “Não me falaram de Cristo” repercutia em minha mente e eu lembrava do profeta a que Deus ordenou pregar “Quer ouçam, quer deixem de ouvir”, e de quem requerirá o sangue se não lhes der a mensagem. Veterotetamentariamente, eu era legalmente responsável pela salvação dos que conhecia, e deveria conhecer mais gente para obter mais estrelas na minha coroa de galardões de testemunha.

Essa idéia de obras mesclada à obra de Cristo foi repetida muitas vezes e de muitas formas no decorrer de minha vida na igreja. Lembro-me de uma irmã contando sobre outra pessoa que atrapalhou determinado trabalho cristão, que lastimou: “Quantas pessoas poderiam ter sido salvas e não o foram porque o mau testemunho dele impediu a ação de Deus”!

Por mais bem intencionado fosse meu espírito evangelístico, essa “teologia de olho de boi” em que o alvo era evangelizar, custe o que custar, com ou sem conhecimento da Palavra de Deus, revelava de cara duas falácias: falta de fé na soberania de Deus, de quem vem tanto o querer quanto o realizar, e desconhecimento de que é o Espírito Santo que convence do pecado, da justiça e do juízo—nossos esforços nada acrescentam ao Reino de Deus, ainda que devamos buscar o reino e a justiça de Deus.

Quando estudava na Palavra da Vida, inicialmente pensava, como Lau naquela época, em missões indígenas. Um campo obscuro, o mais difícil possível, seria o cantinho onde Deus nos usaria para trazer centenas de ameríndios para Cristo. A medida que fomos conhecendo outras formas de evangelismo, fomos nos interessando por estas, e ao sair do IBPV para o campo missionário, o fizemos com a meta de evangelizar os israelitas (cumprindo um desejo de desde a mais tenra juventude). Fomos a BH com a cara e a coragem, o aval de algumas igrejas mantenedoras, muitos estudos superficiais de como evangelizar judeus, muito entusiasmo e muita falta de discernimento.

À medida que estudávamos mais a Palavra, crescia uma visão reformada de evangelismo e missões como parte integrante, não dividida em departamentos estanques, do propósito de Deus para a igreja toda. Aprendemos que a ordem de Jesus era

Indo por todo o mundo, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os no nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vs tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século.”

Não é só ir, é ao ir, onde quer que formos, fazer discípulos de todas as nações. É inseri-los na igreja da qual somos parte—não levá-los à igreja, mas ser igreja, (batizando-os) em nome do Pai, Filho e Espírito Santo—a obra é de toda a Trindade, é ensinar a guardar todo o conselho de Deus (tudo que vos tenho ordenado) e a promessa é: “Eis que estou convosco até a consumação do século”. Não´se trata de contar quantas almas ganhamos para Cristo—é apresentar à pessoa toda, mente e coração, a verdade libertadora. Essa obra do Deus Trino  salva a cada um e todos quantos foram chamados--não somente do inferno, mas dos grilhões do passado, de nossa vida presente, e de um futuro em que conheceremos como também somos conhecidos. O livro Sal da Terra em Terras dos Brasis[1] explica essa visão de evangelismo e missões aplicado dentro da cultura brasileira de uma forma clara e bela, mostrando que a multiforme sabedoria de Deus é muito mais do que passagem para um céu de anjinhos—é conhecer Cristo que nos redime, em quem estão todos os tesouros. Conhecer Cristo e o poder da ressurreição, bem como a comunhão nos seus sofrimentos, é ensino prático de toda a vida para uma vida eterna aqui, agora e para sempre. Isso muda nosso enfoque de evangelismo e missões—expande e enriquece todos os aspectos da vida, e não se limita a chavões que tenhamos decorado, nem a quatro passos ou três perguntas que tenhamos aprendido. É uma escolha, sim, mas não nossa—Ele nos escolheu e nos deu vida, estando nós mortos em nossos delitos. Porque ele nos chamou, nós podemos atender o seu chamado.

Hoje não tenho mais a profissão nem a pretensão de ser missionária. Participo de uma igreja que entende e vive a missão de Deus. Cada dia que passa, estou aprendendo do Senhor Jesus, e acabo compartilhando o que aprendo, até mesmo dos meus erros e minhas falhas, a filhos e netos, amigas e conhecidas, fazendo amizade mesmo com desconhecidos, que passam a fazer parte da mesma família da fé. “O que ganha almas é sabio”, porém, meu alvo não é ganhar almas -- é glorificar a Deus em tudo, e nele ter meu prazer. Ele já me “ganhou” da cabeça aos pés, de dentro para fora e de fora para dentro, com seu imensurável amor!
Elizabeth Gomes



[1] Wadislau M. Gomes, (Brasilia, Monergismo, 2014)

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