domingo, outubro 26, 2014

POLÍTICAS & POLÍTIKAS


Três firmas concorrem a uma licitação para consertar uma janela de edifício público da Capital. A primeira, do DF, depois de acurados estudos, dá um lance de R$ 25.000,00: 30% de lucro, 15% de projeto e suporte técnico, 15% de material; 15% de mão de obra, 5% de garantia, e 20% de “eventuais”. A segunda, de São Paulo, baseada em sua larga experiência com janelas políticas e depois de intermináveis conversas com técnicos e assessores, coloca R$ 250.000,00: 50% de lucro, 25% de projeto e mão de obra, e 25% de “eventuais”. A terceira, de Alagoas, sem nenhum pudor, adianta: R$ 2.500.000,00. Vence a última: 50% para o partido, 49% para a contratada, e 1% para pagar a firma de Brasília para consertar a janela.

Da janela da praça, a visão dos palácios políticos parece meio nublada, como piada de mau gosto. Em vez de descortinar horizontes ensolarados, edifícios claros de luz e de moral, e homens de bem no cumprimento da missão política, nosso povo, impassível, espera passar o trem da alegria “só pra ver se sobra algum”. Ali e lá, as margens plácidas ouvem gritos de libertação que soam mais como a sororoca da morte. São vozes que se perdem em meio ao ruído dos últimos jargões políticos criadas pelos mais recentes arquitetos do poder. Assim, a política – que deveria ser a ciência e arte de amparar as diversas esferas de soberania: do indivíduo, da vizinhança, da escola, do comércio, do estado etc. – virou sinônimo de propaganda manipulativa. Começa com o horário político obrigatório e acaba no numerário político conveniente.

E a gente? Como é possível começar a pensar em termos de uma política biblicamente correta?

Primeiro havemos de discernir o pensamento do homem não-regenerado, do pensamento do homem regenerado. Isto, Paulo faz em Efésios 2.1-4, considerando que Deus nos deu vida em virtude da sua misericórdia e do grande amor com que nos amou. Como todos, estávamos mortos em delitos e pecados, andando segundo o curso deste mundo, em plena rebelião contra Deus (cf. Romanos 1.18-32). Não entretínhamos pensamentos de verdadeira lógica nem de precisão “científica”, mas prosseguíamos no curso deste mundo após o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência. De fato, seguíamos, como alguns cristãos desavisados ainda seguem, as inclinações da carne e dos pensamentos que resultavam de uma ira pecaminosa contra Deus. A origem desse estado de coisas não nos é desconhecida; é mais velha do que a última visão do lado de dentro do Éden.

A serpente sugeriu que, em vez da oposição excludente do bem (cuja existência é real, pois Deus é o bem) em relação ao mal (cuja realidade é contingente ao rompimento com o bem), haveria uma síntese inclusiva: Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal (Genesis 3.5). Desde então, o desvio cresceu e permeou toda a cultura. Adam Smith, quando deu forma ao pensamento capitalista, não fugiu aos cenários do motivo grego da separação entre graça e natureza. Tomando a ética de trabalho e produção dos comerciantes cristãos permitida pela graça divina, Smith elaborou um sistema em que a natureza nobre do labor seria mostra suficiente da graça. Aberta a porta, a sanha individualista do pecado assumiu o controle da estrada. Esse é o caminho, também, de Platão/Sócrates e Aristóteles a Hegel/Marx e Rosa Luxemburg, e de decadência da velha esquerda após a frustração da do “destino inexorável” da deusa História em meio aos jogos revolucionários da nova esquerda e do moderno liberalismo.

Mesmo depois da Queda, a mão de Deus não desamparou a humanidade. As maldições do cap. 3 de Gênesis implicam punição, mas não dispensam a graça do Criador. Primeiro, há a promessa de redenção – Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar – Gênesis 3.15 – de acordo com o propósito eterno. Como diz Efésios 1.6-10, Deus nos concedeu gratuitamente o Amado para que refletíssemos o louvor da glória de sua graça. Não sem obra fomos remidos, mas pelo trabalho produtivo do único Criador, Vida e Luz dos homens (cf. João 1.1-14); e não sem revolução, mas com o preço do único sangue derramado possível de fazer a justiça e de vencer a morte, segundo a riqueza de sua graça. Assim, em Cristo convergem todas as coisas, tanto as do céu como as da terra.

Segundo, há as maldições, de Gênesis 3, como indicadores de uma nova ordem decaída, recebidas por uns como uma maldade de Deus e, por outros, como graciosas placas de advertência ou lombadas protetoras no curso do caminho. A primeira e básica advertência é: o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará (v. 16b); e dela se deriva o entendimento das demais, especialmente, para o nosso caso: E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses, maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida (v. 17). A partir daí, duas forças, igualmente “humanistas”, ignoraram a promessa da previdência divina da redenção: a da perspectiva de injustiça notada nos caminhos do lado de fora do Éden e a perspectiva do trabalho e da produção humana como impossíveis redentores.

O ponto é que, sendo regenerados em Cristo Jesus, temos como certa a operação do seu Espírito em toda e cada área da vida, como também disse o apóstolo Paulo (Efésios 2.13-22): estávamos longe de Deus, separados dele e, por decorrência, uns dos outros, mas fomos aproximados pelo sangue de Cristo. Sua proposta não é apenas uma idéia etérea, mas algo concreto em termos de política, mais acertadamente, da política do reino de Deus manifestado em Cristo. Ele é nossa paz mediante a qual somos unidos ao Pai e uns aos outros. Ele derribou a parede de separação, a inimizade, abolindo a lei dos mandamentos que forçam as obras da carne, tanto as de trabalho e produção individualistas quanto as de revolução e homogeneização social. A exemplo da unidade evangélica – retratada no chamado de Abraão para abençoar a terra por meio de ser o meio para o nascimento do Messias Jesus e, nele, para ser o sal da terra e luz do mundo – os verdadeiros filhos de Abraão (cf. Gálatas 3), isto é, os remidos do Senhor, evangelizamos a paz. E novamente, não será por meio de uma lei de trabalho e produção nem de uma lei de revolução e equidade que salgaremos e iluminaremos a terra, mas por meio da pregação da verdade Deus em amor demonstrada na vida da igreja pautada na política do reino (cf. Mateus 5 e 6). Se a igreja viver o fato de que já não somos estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos e a própria família de Deus, e se Cristo for a pedra angular, no qual todo edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, então o mundo será iluminado e a terra, salgada. Os escolhidos verão a igreja como farol indicador do porto seguro, e os habitantes da terra serão abençoados com o sal restaurador.

As gerações atuais terão dificuldade para ver desta janela, pois as mudanças das paisagens ao longo do caminho tomaram novas formas à medida que o discurso mudou a cada colisão com as lombadas da maldição. Capitalismo e socialismo tornaram-se, cada qual, a serpente do jardim do outro. Para uns, Deus seria o mal da humanidade e, para outros, em nome de Deus o mal seria praticado. Com toda certeza também, alguém encontrará pontos de verdade na hermenêutica do mundo em ambas as perspectivas, dado que as duas visões não poderiam evitar a graça de Deus. Contudo, a rebelião do pecado levou os homens a suprimir a verdade de Deus e a falsificar suas próprias “verdades” (Romanos 1.18-32). Assim, o problema que temos hoje não é o de uma oposição entre capitalismo e socialismo, mas uma perversão da missão original do indivíduo e o papel da sociedade na tarefa de reproduzir a glória de Deus tal como grafada nos Dez Mandamentos, especialmente no resumo do Senhor: ...e, se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Romanos 13.9).

Se tudo aquilo que vimos se trata de uma velha disposição pecaminosa revestida de palavras novas, talvez seja bem que coloquemos isto em outras palavras mais adequadas. Em vez de usar direita e esquerda (que não diz nada em relação a nada) uso as palavras destra e canhota. Destra é apenas uma mão mais bem treinada para a maior parte dos serviços e, canhota, uma mão treinada para alguns serviços. É certo que tem gente ambidestra, mas ilustração é ilustração... Se considerarmos a missão do homem segundo os termos dos estudos bíblicos teológicos utilizados por Abraham Kyper, Herman Dooyeweerd e Cornelius Van Til, teremos que o homem é um ser religioso, atuante, receptivamente criativo e ativamente redentivo, cuja missão é reproduzir a relação com Deus na relação entre os homens. O homem é um ser religioso, e sequer Adam Smith ou Karl Marx puderam escapar a isso. Eles foram tão religiosos quanto nós, diferenciados apenas pelo objeto da fé. Historicamente, ambos cresceram em um ambiente judaico cristão, sendo que Marx se rebelou contra o deísmo e Smith valorizou um tipo de tradicionalismo. No entanto, não puderam se evadir à teorreferência – todo homem é um ser religioso cuja referência é Deus, quer para adorá-lo que para falsificá-lo em termos de ídolos (ver Atos 17.22). Da mesma forma, o homem é um ser atuante, criado para glorificar a Deus na obediência à sua verdade e na expressão do seu amor, ambas as atuações calcadas na ordem para “guardar e cultivar” as obras das mãos de Deus. Devido à Queda, porém, e seguindo o caminho de Caim, Marx, idolatrou a história e a dialética hegeliana e, Smith, o trabalho e a produção. Ora, o homem é um ser receptivamente criativo e sua atuação jamais será autônoma, autocontida ou suficiente. Tudo vem do alto, de Deus que criou todas as coisas e que as mantém na força do seu poder. É exatamente essa dependência de Deus que torna possível a convivência entre os homens em face da luta pelo pão de cada dia e, até mesmo, pelo ar que respiramos (ver At 17.25-28). E, finalmente, o homem é um ser ativamente redentivo. Conforme o modelo do Criador, o homem anseia consertar o que está quebrado. Há injustiça? Que haja equidade! Há necessidade? Que haja trabalho e produção! Mas Marx o quis por meio de revolução, e Smith o desejou por meio de obras – meios impossíveis para redimir o homem. Um valorizou a sociedade como se fosse uma personalidade e, o outro, valorizou o indivíduo e suas competitividades, não levando em conta, a canhota e a destra, que, sem a paz de Deus e a unidade do Espírito em Cristo Jesus, o homem se destrói e a sociedade fica sem seu elemento formador.

O certo é que, assim como um quadro não será belo se cada pincelada não for bonita, assim também uma sociedade não será bela se os indivíduos que a compõem não forem bonitos. Bonitos, digo, da beleza do reflexo da glória de Deus. No caso, aqui, as tendências políticas humanas apenas revelam a feiúra da nossa cara e a maldade das nossas mãos. A destra buscando riquezas terrenas em detrimento das riquezas espirituais, e, a canhota, desferindo murros contra Deus e acertando a própria cara. Pelo menos, a destra admite que a adoração de Deus seja servida, mas, a canhota, levanta-se contra tudo que se chame Deus, exceto a mão do partido que pretende reger a sociedade.

Em uma análise realista, tanto a destra quanto a canhota são religiosas e teorreferentes, quer cultuando ao Deus verdadeiro quer cultuando a ídolos de reposição. Ambas são igualmente atuantes em termos da sua ação sobre a realidade percebida. As duas são, da mesma forma, receptivamente criativas, pois Deus é quem lhes concede a graça comum sem a qual nada poderia ser feito. E são também ativamente redentivas no sentido de notar os erros e tentar consertá-los, cada uma a sua maneira. Entretanto, a fim de serem bem sucedidas, não lhes basta seguir uma forma de lei sem atentar ao princípio da lei de Deus. Não lhes basta uma lei natural, a qual, como diz Vern Poythress, “é realmente a lei de Deus, imperfeita e aproximadamente descrita por investigadores humanos” (Poythress, Vern Sheridan. Redeeming Sociology, Wheaton, Il: Crossway, 2011, p. 75). De fato, precisariam conhecer o princípio da lei, o próprio Senhor Jesus Cristo, sua Palavra e sua obra redentora. Além disso, precisariam ter uma noção de sociologia e de economia sob uma hermenêutica bíblica.
Wadislau Martins Gomes

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