terça-feira, março 20, 2012

CAUSO RÁPIDO SOBRE UMA INDAGAÇÃO


Juciliano de berço, Totó de gosto, mas que não viessem com intimidades, porque, aí, punha brio. De criança rechonchuda e adolescente magriço, hoje desconta e bota banha que enche os olhos. Dr. Juciliano, o Totó – quem diria! – de quadro na parede e conversa palavreada que só vendo. Em casa, Aparecida e Francisca. A vida ia como vai a vida, amando Cida e adorando Fiica, planejando o dia seguinte e resolvendo o presente.

Um dia, o Jaime da venda perguntou mais pra enrolar o tempo:

– Então, Dr. Totó, Deus existe?

– Difícil de dizer, mas deve existir.

Totó saiu da venda com dois filões de pão daqueles de antigamente, meio quilo de café moído na hora, trezentos gramas de salaminho, e uma pergunta de gelar a alma: "Creio em Deus?" No fim da tarde, a questão tinha virado dor de cabeça, depois, insônia, cansaço, e, depois ainda, quase pesadelo, desses que passam de manhã ou saram antes de casar. Mas a pergunta não ficava quieta.

Na ida para o trabalho, beijada a Cida, acenou para Fiica à frente da casa. As crianças da vizinhança politonavam: ó tu que és tão forte que fura o muro que é tão grande que tapa o sol que é tão quente que derrete a neve que prende meu pezinho...  O ponto de interrogação se agarrava à mente como carrapicho de rabo. "Por que foi que eu disse que ele existia?" Passou no meio das crianças sem se dar conta que lhes invejava o entendimento de que o maior escolhido sempre será deus.

Mais tarde, quando voltou a casa e mordeu uma fatia de pão passado com duas rodelas de salame gorduroso e tomou um gole de café requentado, a pergunta continuava fresca.

O vai não vai das idéias, agora, tinha virado briga. Passou na venda para mais umas encomendas da Cida, agarrou um luxinho, uns pés de moleque “para a Fiica”, pensou, e dirigiu-se ao caixa.

– Então, um doutor advogado e ainda acredita em Deus? – seu Jaime baixou o nariz na sua direção, fingindo vergonha da pobreza da piada.

– Olha, seu Jaime, existe coisa ruim?

– Tá na cara, é só olhar por aí.

– E tem gente que gosta de coisa ruim?

– É o olho da cara, o povo vive procurando coisa ruim pra cobiçar, mulher dos outros, dinheiro, posição e tudo mais.

– Assim, posso dizer que mulher alheia e dinheiro e posição e muito mais são coisas ruins?

– Ahn... não é por aí. Mulher de amigo e dinheiro são bem-vindos no meu armazém, e bem tratados que dou valor para minha posição.

– Então mulher e dinheiro são coisas boas?

– Qual é, Dr. Totó, o que Deus tem a ver com dinheiro e com mulher do próximo?

– Ô, seu Jaime, o mundo tem coisas boas e más e as pessoas adoram uma e outras – são seus deuses!

– Ainda não peguei...

– Não é certo que aquilo ou a quem nós obedecemos fica sendo nosso Deus?

– Isso é. Quem adora dinheiro está pronto para se vender.

Dr. Juciliano sequer podia acreditar no que estava acontecendo. A existência de Deus só lhe incomodava quando vinha na boca dos evangelistas de TV com a fala e o comportamento parecendo dublagem de filme chinês, ou na voz do âncora da TV da seita rival. Agora, dava essa de se preocupar com se Deus existe ou não. Sacudiu a cabeça para ver se passava e se achou mais doido ainda, andando pela rua e se sacudindo como cachorro molhado. Sacudiu o passo, e foi a casa. Veio-lhe à cabeça uns versos do Vinícius: “Porque hoje é sábado, há uma terrível perspectiva do domingo”.

Fiica, de um lado da mesa, fazia a lição de casa. Menina inteligente, essa. Um orgulho. Cida tinha chegado a pouco do trabalho. O café Lourenço escorria no coador de pano levantando um perfume bom de café sem palha. Sentiu-se bem. Tinha de achar uma resposta.

– Cida, amanhã vou com vocês à igreja.

A mulher voltou a cabeça como quem é cutucada. Vinha treinando sabedoria e não ficava pegando no pé do marido. De vez em quando, falava coisas de fé e de Cristo, mas se percebia incomodo, mudava o assunto para importâncias do dia a dia. Ela e Fiica vinham freqüentando a Igreja Presbiteriana Paulistana.

Pouco antes do início do culto, um pastor cumprimentou os visitantes de primeira vez. “Dr. Juliano”, ele ouviu, e pensou: Totó. A caminho, foi movido pela expectativa da calma da resposta, e, desde o cafezinho com direito a suco de laranja, pão com queijo e cumprimentos que soavam sinceros, já se sentia em casa. Lugar diferente, música bonita, artística, gostosa, mas também diferente, e uma sensação de estar prestes a ouvir a qualquer momento uma voz que reconheceria. E isso aconteceu quando outro pastor mandou abrir a Bíblia em Hebreus 11.6, e leu: “Sem fé ninguém pode agradar a Deus. Quem se aproxima de Deus deve acreditar que ele existe e recompensa os que o procuram”.

As palavras do pregador massageavam sua mente exatamente aonde a pergunta incomodava. Não dava para explicar, mas estava entendendo mais do que sabia. Conseguia discernir entre o “evangelho” que repudiava e o Evangelho de Cristo. Palavras como morte e ressurreição não lhe pareceram religiosas e, tão certo como a morte, desejou ressurreição.

Dia seguinte, seu Jaime viu Totó entrando na venda, novo olhar, novo passo.

– Bom dia, Dr. Juciliano. Dia de festa? Aniversário da patroa? Da Filha? Ganhou na loteria?

– Deus existe, seu Jaime, Deus existe!

Wadislau Martins Gomes

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