sábado, maio 14, 2011

BRAVO COM O QUE ESTÁ ACONTECENDO POR AÍ?


A morte do Osama, a revitalização do Obama, os passaportes dos Silva, a radiação no Japão, a relação do álcool e da gasolina, a imoralidade das minorias políticas e sociais, a inação da maioria, os destemperos naturais, o pecado de crentes e de incrédulos, e o meu próprio – tudo isso estava me deixando brabo. Até que, como disse o Drummond, em Caso Pluvioso, sobre uma chuva chamada maria: “e Deus, piedoso e enérgico, bradou: Não chove mais, maria! - e ela parou”. E paro eu, não de ficar bravo nem de lutar, mas de permitir que as coisas me irritem e me impeçam de achar graça na vida.

Para que você me siga enquanto penso, deixe-me ilustrar com dois causos. Primeiro um da minha irmã que, pouco mais que menina, ensaiava a mocidade no vai e vem da praça do interior. Um moço desceu da lambreta, calças rancheira, saltos carrapeta, cabelo à Elvis, veio até ela, e disse: “Qual sua graça?” A pobre perdeu a graça, olhos no chão, e murmurou: “Eu não fiz graça nenhuma”. Depois, ô desgraça, percebeu a falta de jeito e desabalou para casa. Tempo depois, ela achou graça da história. É isso aí: graça é beleza que atrai, arte de se dar a conhecer, padrão de transparência de verdade em amor – e alegria autêntica!

O segundo é da minha infância. A panela sobre o fogão a carvão, sofrida do abrasamento da chama e do pó de arear, em um dado momento aprendia a assoviar, aos psius. Minha mãe, então, levantava a dita contra a luz para ver se o furo “dava conserto”. Muitas vezes, eu, olhando estrelas, pensava se o céu não seria o fundo sujo de fuligem de uma panela em que furos de estrelas deixavam passar fios de luz. É mais isso: a glória de Deus, varando a treva desta vida pouca, em réstias de graça, revela a beleza do Criador, sua verdade, seu amor, sua alegria. A cada clarão, eu digo: “Eu não mereço”. Então, tem mais essa: graça é isso: é o movimento de Deus na direção do homem a fim de lhe transmitir sua própria natureza.

Gente adulta, quando a noite chega, só pensa em conforto de luz elétrica e treme com medo de apagão; vive analgesia de televisão e ânsias de notícia ruim (terrorismos, guerras, violência urbana, abuso de toda sorte...); de dia, lida para ter abastança e sofre desmaios de impostos. Entra ano e sai ano, alimenta expectação de melhoria e frustração de trancos políticos e econômicos. Só de pensar, alguns se mordem de ira e, outros, parecendo calmos, acalentam desesperos românticos – “pra frente Brasil”, “um passo a mais (!)”, “agora é real”, “é a vez do trabalhador”, e até parece que a Nação descobriu a máquina do tempo: “o País do futuro”! Isso é de dar azia até em sal de fruta!

Nessa hora é que é preciso pensar na ira e na graça de Deus. Na graça irada de Deus. É isso mesmo, ira tem graça! Se não tiver graça, a dominação da ira será como insônia e pavor noturno. Sem ira, será como dormir a poder de remédio – mais dopado do que rolha de garrafa de pinga. Não entendeu? Vai outro caso. Caído da escada, braço quebrado, perguntei ao meu pai: “A dor não passa?” “A dor é boa, filho” – ele respondeu –, “é um sinal para nos proteger de sofrer mais; só é ruim quando é maior do que a gente”. Assim é a ira; em si mesma, ela é boa; serve para indicar que uma injustiça foi cometida. Só é ruim quando extravasa e fere pessoas ou, internalizada, machuca a gente e contamina a muitos.

O vídeo de suas excelências, nobres parlamentares, entre tapas e beijos freudianos, só não escandaliza mais porque já ficamos muito sem-vergonha. De cara lavada, as exegeses da mídia batem na fuça da gente: a face esquerda grita homofobia e a direita responde heterofobia. O que fazer? Contar piada? Disse o sábio que “Como quem se despe num dia de frio e como vinagre sobre feridas, assim é o que entoa canções junto ao coração aflito” (Pv 25.20). Pelado, vinagre na ferida? Nem pensar. No entanto, tem de haver uma roupa quente nesse frio despudor, uma canção nesse grito de sangue, uma réstia de luz nessa sombra desumana. Certamente tem, tal como o sábio continuou:

Se o que te aborrece tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber, porque assim amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça, e o Senhor te retribuirá. O vento norte traz chuva, e a língua fingida, o rosto irado. Melhor é morar no canto do eirado do que junto com a mulher rixosa na mesma casa. Como água fria para o sedento, tais são as boas-novas vindas de um país remoto. Como fonte que foi turvada e manancial corrupto, assim é o justo que cede ao perverso. Comer muito mel não é bom; assim, procurar a própria honra não é honra. Como cidade derribada, que não tem muros, assim é o homem que não tem domínio próprio. (Pv. 25.21-28.)

A exegese do apóstolo Paulo aponta o caminho. Em Rm 12.9-21, ele diz que o “amor seja sem hipocrisia”, isto é, de cara limpa, em que seja visto o desgosto pelo mal e o apego ao bem (v. 9). Fala também de amor cordial, fraterno, “preferindo-vos em honra uns aos outros” (v. 10). Isso, é claro, só poderá ser exibido por quem é nascido de novo e tem o poder de Espírito para refletir a face de Cristo (cf. 2Co 4.1-18); não podemos esperar isso de pessoas que pretendem viver sem Deus, pois quem tem flores dá flores, quem não as tem não as pode dar. Mas quanto a nós que, pecadores como eles, fomos redimidos por meio da pessoa e obra de Jesus Cristo, Paulo continua:

No zelo, não sejais remissos; sede fervorosos de espírito, servindo ao Senhor; regozijai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, na oração, perseverantes; compartilhai as necessidades dos santos; praticai a hospitalidade; abençoai os que vos perseguem, abençoai e não amaldiçoeis. Alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram. Tende o mesmo sentimento uns para com os outros; em lugar de serdes orgulhosos, condescendei com o que é humilde; não sejais sábios aos vossos próprios olhos. (Rm 12. 11-16.)

A chave para o relacionamento adequado entre o cristão irado/gracioso e essa situação de ira perversa do mundo em que vivemos vem nos versículos que seguem.

Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor. Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem. (Rm 12. 17-21.)

Essas coisas, certamente, apagarão os “vídeos” de nossa vida em que a ira incontida cobre de lava e cinza todo o testemunho e beleza da glória de Deus. Ficarão aqueles em que a graça recebida é dada de graça a todos os homens, “sem ver a quem”, mas de olhos abertos para o mal que está aí que tem de ser combatido. Para isso, será preciso lembrar o que Paulo também disse: “Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira, nem deis lugar ao diabo” (Ef 4.26-27).

Para ser graciosa, a ira jamais poderá ser manifestada contra outras pessoas ou guardada no peito, sem exteriorização: ela terá de ser dirigida contra o problema! Como? Imagine que a patroa venha pedindo a tempos que você conserte “aquela” porta. Um dia você não pode, outro não quer, até que a coisa “pega”. Então, você faz com cara de mau, agarra prego e martelo, e desconta na porta. Findado o trabalho, rostos plenos de graça, você sente: “Que magnífico carpinteiro o mundo perdeu quando...”

Wadislau Martins Gomes

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